Por que os institutos de pesquisa erraram tanto

Atualizado em 4 de dezembro de 2020 às 18:28
Urna

Publicado originalmente no Le Monde Diplomatique

POR JOÃO FERES JÚNIOR, professor do Instituto de Estudos Sociais e Políticos da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (IESP/UERJ), doutor em Ciência Política pela City University of New York, Graduate Center, e coordenador do Observatório do Legislativo Brasileiro (OLB) e do Grupo de Estudos Multidisciplinares da Ação Afirmativa (GEMAA)

Para além dos festejos mal disfarçados da grande mídia nacional perante o que a maioria dos jornalistas interpretam como derrota da esquerda, e sobretudo do PT, nas eleições municipais, reside um enigma ainda não decifrado: por que os institutos de pesquisa erraram tão sistematicamente na previsão dos resultados do segundo turno das eleições?

É normal haver algum erro em pesquisas de opinião de toda sorte, quanto mais nas eleitorais, pois seu instrumento de medida é bastante imperfeito e o evento não pode ser observado diretamente. Mas dessa vez o erro foi sistemático, no duplo sentido que esse termo críptico pode ter de repetido e padronizado. O padrão observado foi o da superestimação do voto nos candidatos de esquerda e isso se repetiu em cidades como São Paulo, Porto Alegre, Vitória, Recife, entre outras. Mesmo quando houve vitória da esquerda, como em Belém e Fortaleza, o resultado final ficou bastante aquém do que o previsto pelas pesquisas.

A esquerda muitas vezes reclamou dos resultados das pesquisas de opinião, suspeitando de manipulação dos resultados para benefício das candidaturas de seus adversários. O fato de as empresas que prestam serviço de pesquisa quantitativa para as campanhas serem também aquelas contratadas para fazer as pesquisas divulgadas pela mídia é realmente preocupante, pois isso gera conflitos de interesses. Nossa legislação eleitoral judicializada, tão diligente para algumas coisas, deveria se debruçar um pouco sobre esse problema. Mas no tocante à maioria das eleições em capitais agora no segundo turno, essa acusação seria infundada. Se houve sobre-estimação, foi do voto de esquerda.

Tentarei aqui enumerar hipóteses que possam explicar esse fenômeno, sem ter, contudo, todos os meios de testá-las. Porém, sempre que possível, fornecerei dados que possam pelo menos diminuir incertezas. Usarei também o exemplo da eleição do Rio de Janeiro para tentar iluminar a análise.

O primeiro lugar a se olhar, o elefante na loja de cristais, é o nível de abstenção. Muitos comentaristas demonstram surpresa com a média nacional no segundo turno, que atingiu quase 30%: é a maior do século e quase 10 pontos percentuais acima da marca do segundo turno das eleições municipais passadas. Mas eles não sabem direito como interpretar o fato.

De cara temos um problema. Da maneira como são noticiadas, as pesquisas de opinião não estimam abstenções. Então a mensagem passada ao público, e que os analistas de plantão reverberam, é que os entrevistados responderam que votariam em candidato x, y, z,…, em branco, anulariam ou não sabiam. Aí o resultado eleitoral mostra, se bem lido, que as abstenções em alguns casos ganharam as eleições ou ficaram em segundo lugar. Mas onde estavam escondidos esses não votantes que não apareceram nas pesquisas? No Rio de Janeiro, por exemplo, Eduardo Paes ficou com 64% dos votos válidos, mas o número de abstenções corresponde a 68% dos votos válidos, ainda que, obviamente, não sejam contadas como tal. Em suma, mais cariocas não participaram das eleições do que votaram em Paes.

Só que aí entramos em terreno sombrio e nebuloso. O que falar daqueles que foram silenciados, dos quais quase nada sabemos? Ao tentar responder essa questão, é inevitável um certo grau de especulação, mas é necessário que ela seja minimamente fundamentada. Sei, por analisar resultados de pesquisas qualitativas nesta eleição, que o descrédito da política era grande, o que levava alguns participantes de grupos focais a declararem sua disposição de não ir votar. Por razões óbvias, essas pesquisas privilegiam a participação de eleitores indecisos, e isso nos abre uma pequena janela para observar os argumentos, ideias e atitudes daqueles que, no final das contas, decidiram não votar.

O antipetismo, o antilulismo, anti-esquerda e a antipolítica eram fortes no público de indecisos. Todos vinculados a um discurso de redução da política à corrupção que coloca o PT e Lula como seus principais artífices. Os portadores desse discurso se expressam com frases feitas que soam como se retiradas de manchetes da Veja, editoriais de Estadão e O Globo.

Mas aqui já temos um dado bastante importante para avaliarmos a falha dos institutos de pesquisa. Aqueles que fizeram diferença nas urnas na última hora certamente vieram das frações mais recalcitrantes do eleitorado, isto é, exatamente aqueles mais descrentes da política, aqueles mais tocados pelo discurso da antipolítica. Em outras palavras, os que foram convencidos na última hora a votar vieram de pool de eleitores altamente enviesado contra as instituições políticas e, mais especificamente, contra a esquerda.

Se a questão é olhada de outra perspectiva, um novo potencial fator se revela. Com uma proporção tamanha de gente indisposta a votar, o sucesso eleitoral passa a depender da capacidade que a campanha do candidato tem de levar seu eleitor à urna. Os grupos focais mostraram várias pessoas com preferências, mas fracamente motivadas a votar. Em outras palavras, a descrença na política aliada às restrições e o medo da pandemia e a possibilidade de justificar pelo aplicativo produziram um cenário eleitoral mais similar ao dos países em que o voto não é obrigatório, como os Estados Unidos. Motivar seu eleitor a comparecer foi fundamental.

É aí que entra outro fator potencial: o voto dos evangélicos. Enquanto as campanhas de candidatos sem vínculos com comunidades evangélicas tiveram os meios tradicionais para se comunicar com seus eleitores – HGPE, debates, campanha de rua e cobertura de mídia –, os candidatos apoiados por elas contaram muitas vezes com a militância dos pastores. Utilizando-se de um vocabulário de outros tempos, Boulos falou muito de “virar votos” nos seus vídeos da véspera. Nessa eleição, provavelmente, mais importante que virar o voto de quem iria votar no adversário – coisa bem difícil de fazer – foi “fazer votar”. Isso os pastores puderam fazer até no dia da eleição, no culto matinal.

Por fim, é possível que os seguidores de Bolsonaro, aqueles mais integrados pelos meios alternativos de comunicação do bolsonarismo, tenham uma predisposição contra pesquisas de opinião e contra tudo associado à grande mídia brasileira. Como a proporção de apoiadores mais renitentes do ex-tenente é em torno de 20%-30% da população, uma atitude desfavorável à pesquisa redundaria em sub-representação dessa fatia ultraconservadora do eleitorado nos resultados ou mesmo em disposição para mentir ao pesquisador, o que também causaria dano à representatividade da amostra.

A maioria das pesquisas feitas pelos institutos contém a pergunta sobre a predisposição do respondente ao voto. O problema é que esse dado desaparece quando a pesquisa é noticiada nos meios de comunicação e, por conseguinte, some das análises dos publicistas de plantão.

É claro que os argumentos elencados acima são apenas hipóteses. Mas seria muito interessante se os institutos revissem seus procedimentos para tentar iluminar pelo menos parcialmente esse elefante na penumbra. Uma pesquisa pós-eleição que ocorresse em tempo de capturar a memória ainda fresca do eleitor que se absteve já ajudaria.

Uma coisa é certa, quando muitos se abstêm da participação política os ganhadores são poucos e a democracia é sempre a maior perdedora.