Por Magda Almeida*
As pessoas me perguntam como médicos podem votar em pessoas que exaltam torturadores e incentivam o extermínio de etnias, dentre outras formas de violência. Não é difícil entender quando se estuda a história da medicina.
O treinamento da nossa profissão, principalmente nos países de média e baixa renda, ainda é relacionado ao domínios de corpos de pessoas em vulnerabilidade social. No nosso país, principalmente pessoas pretas, pobres e periféricas são submetidas à exploração dos seus corpos para que profissionais de saúde (que talvez nunca mais coloquem suas competências profissionais a serviços delas e seus descendentes) aprendam o seu ofício.
Aprendemos a desautorizá-las na sua sabedoria popular, no pouco conhecimento que têm sobre si mesmas. Tudo para que possamos aprender a examinar, executar procedimentos e dar diagnósticos.
Até pouco tempo atrás (pouco mais de 40 anos), experimentos em seres humanos eram realizados considerando que existiam seres humanos “inferiores”. Portadores de transtornos mentais, negros, mulheres, pobres, prisioneiros, judeus, ciganos, homossexuais e crianças foram submetidos a experimentos que hoje são considerados anti-éticos e causaram dor, humilhação e mortes terríveis.
Não nos ensinam os erros antigos, no intuito de não repeti-los. Desconectam a medicina de todo um contexto econômico e político, e desse modo, não nos fazem perceber os fios invisíveis que nos conduzem. Em 1933, 44,8% dos médicos alemães eram filiados ao partido nazista. Era a maior proporção de representação entre todas as profissões.
Quanto mais o paciente tem autonomia, menos os médicos tem poder.
Aprendemos a não criticar a medicina, a nos martirizar, a achar que somos melhores que todos os demais. Que o nosso sofrimento para passar no vestibular, após seis anos de faculdade e depois residência, nos transforma em seres mais iluminados que os outros – como se estudar física durante quatro anos fosse muito fácil.
Raramente nos falam que o mais difícil da medicina é cumprir a sua função social, o nosso contrato implícito com a sociedade, no qual as pessoas esperam que coloquemos os interesses delas à frente dos nossos. Nos é negado um extenso corpo de conhecimento sobre profissões que já existem em disciplinas como sociologia e filosofia. Nos falam que isso não é importante.
Desse modo, exercemos a medicina sem saber que deve haver um equilíbrio entre os privilégios profissionais e a percepção do público de que a profissão está servindo ao bem-estar público. Isso não é uma regra explícita. Não está contida nos códigos de ética, mas aparece em vários estudos sociológicos e filosóficos sobre a profissão médica. Nossa autonomia só poderá ser preservada enquanto a profissão cumprir as responsabilidades que dela se espera.
É nesse sentido que uma profissão se torna um chamado, uma vocação, não simplesmente uma ocupação.
Nos últimos anos, as profissões tornaram-se mais estreitamente ligadas à aplicação de conhecimento especializado e menos relacionadas às funções centrais para o bem do público que servem. O descrédito da medicina perante a sociedade não é culpa de nenhum governo específico ou partido. Tampouco, é novo.
Nós que ignoramos todo esse movimento. Aos poucos abrimos mãos da confiança pública, e o debate sobre cuidados de saúde tem sido dominado não por médicos ou profissionais da saúde, individual ou coletivamente, mas por interesses comerciais, econômicos e políticos.
Perdendo espaços de poder, reagimos, brigamos contra aqueles que achamos ser os culpados. Ignoramos cerca de 40 anos de mudanças no contexto global e paradigmas, e só conseguimos enxergar os últimos 12 anos. Queremos alguém que se posicione contra tudo e recupere o nosso status. Não queremos pensar sobre a nossa responsabilidade de estarmos nesse lugar.
Usar palavras como doença e raça contra quem pensa diferente é parte do repertório conservador, e muito fácil de ser assimilada pelos médicos. Achar que pode e deve haver uma “cura” para posições ideológicas se encaixa perfeitamente no raciocínio biomédico.
É por isso que é tão fácil aproximar os discursos da medicina do fascismo. Já dizia Paulo Freire: “Quando a educação não é libertadora, o sonho do oprimido é ser o opressor”.”
*Magda Almeida é professora da UFC (Universidade Federal do Ceará). Ela defendeu Doutorado em Competências para o Profissionalismo no curso de Medicina.