Era 1993, alguns meses depois da queda por corrupção do presidente Fernando Collor, estive no Supremo Tribunal Federal como repórter da revista Veja.
O primo de Collor, Marco Aurélio Mello, já usava a capa preta que distingue os ministros da corte.
Ali despontava José Carlos Moreira Alves, avesso a entrevistas, temido pelos colegas, com reputação de mestre do direito, debatedor implacável.
Os assessores no Supremo diziam que Sepúlveda Pertence, outro notável, teve uma síncope cardíaca depois de um embate com Moreira Alves.
Este não poupava os novatos. Dispensava a Marco Aurélio Mello um tratamento próximo do desprezo.
Moreira Alves era o líder da então majoritária corrente que limita o Supremo ao papel de legislador negativo.
Não havendo lei, não há sanção, pois o papel de criar a norma cabe ao Legislativo, jamais ao juiz.
Na opinião dele, ultrapassar essa linha desequilibra os poderes republicanos. Hoje, a prática no Supremo é outra. Inversa. É o chamado ativismo judicial.
No ano passado, em reportagem para um programa de tevê, cobri uma palestra no Instituto dos Advogados de São Paulo em que Gilmar Mendes defendeu, com indisfarçável orgulho, esse papel ativo dos ministros do Supremo.
Em 1993, Gilmar Mendes também era ativo, mas na defesa de Fernando Collor, de quem era assessor.
Ele e Marco Aurélio, que também se tornaria defensor do ativismo judicial, já jogavam no mesmo time.
Marco Aurélio, por ter sido indicado por Collor, não pôde votar na decisão que confirmou o impeachment.
Naquele julgamento, destacou-se Celso de Mello, também ministro. Ele foi voto vencido na decisão que validou a cassação de Collor.
Nesse julgamento, ficou ao lado de Marco Aurélio e Gilmar Mendes. Mas as razões eram diferentes.
Marco Aurélio e Gilmar Mendes eram do núcleo político de Collor, um por ter sido assessor, outro por lhe dever a indicação ao Supremo.
Celso de Mello era uma indicação do governo Sarney, ao qual prestou serviço como assessor do jurista Saulo Ramos, então Advogado Geral da União. Foi parar lá quando uma vaga no Supremo foi oferecida a Saulo Ramos.
Este, titular da então mais bem paga banca de advogados do Brasil, cedeu o lugar a Celso de Mello, ainda jovem, mas brilhante, segundo me disse o próprio Saulo Ramos.
Saulo e Celso viriam a se desentender mais tarde por conta de um voto que contrariou Sarney.
Esta é outra história, mas arriscaria dizer que na consciência de Celso de Mello a obediência à lei é um valor maior que o da gratidão.
Ou, para adaptar uma frase de Joseph Pulitzer, juiz de direito não tem amigos.
Como repórter da revista Veja, entrevistei Celso de Mello algumas vezes entre o impeachment de Collor e a decisão em que ele foi voto vencido.
Na época, ao contrário do julgamento do mensalão, havia uma intensa mobilização popular, o chamado clamor das ruas, pela cassação de Collor.
Desde a primeira entrevista, Celso dizia, reservadamente, que não podia votar pela cassação, uma vez que Collor renunciou antes de ser julgado pelo Senado.
Portanto, no entendimento dele, não era válida a sanção que impunha a proscrição de oito anos. Ele perdeu, mas parece que não estava errado.
Se estava, por que é que, depois do impeachment, a lei foi alterada e hoje, depois de iniciado o processo de cassação no Congresso, a renúncia não impede o julgamento?
Em 1993, o sucessor de Fernando Collor, Itamar Franco, andava às turras com o Supremo Tribunal Federal quando para lá fui enviado com a missão de reportar uma suposta crise.
Andava pelos corredores do Supremo quando Marco Aurélio Mello me abordou.
O ministro sugeriu um cafezinho em seu gabinete. Durante a conversa, me surpreendeu com uma proposta: “Por que você não faz uma matéria comigo?”
Para mim, ministros do Supremo eram quase seres de outro planeta, mereciam reverência, e julguei imprópria a abordagem.
“Tenho decisões polêmicas”, insistiu o ministro. “Tenho certeza de que dará leitura.”
Alguns meses depois, quando julgou pela absolvição de um homem que manteve relação sexual com uma menina de 12 anos, inovando no entendimento do que seria estupro, Marco Aurélio Mello se tornou notícia. Mais tarde, por sugestão minha, Celso de Mello ganhou um perfil na Veja.
Já Marco Aurélio até hoje aguarda a minha resposta sobre sua sugestão de se tornar matéria.
Certamente não lhe fez falta, pois passou a ocupar o noticiário com frequência e a aparecer quase todos os dias na tevê. No canal que transmite ao vivo as sessões da corte, é um dos mais ativos oradores.
Em 2005, voltei ao Supremo como repórter do Jornal da Record. Estava sentado numa poltrona reservada ao público quando um jovem na faixa dos 30 anos, com uma mini toga preta sobre o ombro, a vestimenta do assessor, me sugeriu entrevistar um ministro do Supremo.
Quem era?
Joaquim Barbosa, seu chefe, o primeiro ministro negro da corte.
Agradeci a oferta, e esclareci que a pauta era outra: entrevistar o ministro Nélson Jobin, presidente da casa. Vi que Marco Aurélio tinha feito escola.