Por Moisés Mendes
O presidente Gabriel Boric é apresentado como o grande perdedor do referendo que rejeitou o que poderia ser a nova Constituição do Chile.
A derrota acordou a direita e a extrema direita, quietas desde as manifestações de rua iniciadas em outubro de 2019 e que levaram à Constituinte e agora à frustração.
Tanto acordou que grupos pinochetistas foram às ruas, em 11 de setembro, no aniversário do início da ditadura, para enfrentar manifestantes de esquerda.
E o que fez o presidente? Anunciou que, ao contrário do que os fascistas pensam, eles não terão paz. E que o Chile continuará avivando a memória do que aconteceu na era Pinochet.
Como parte do que está sendo planejado para o aniversário do 50º ano do golpe, em setembro do ano que vem, Boric anunciou que desde agora o governo participa de uma nova empreitada.
O Chile vai em busca de novo de pistas que esclareçam o que aconteceu com os 1.192 cidadãos e cidadãs que até hoje são dados como desaparecidos em algum momento a partir de 1973. Mais de 500 eram crianças.
O Chile teve mais de 3 mil mortes e desaparecimentos. Na Argentina, foram mais de 30 mil, mesmo que esse número seja sempre questionado.
No Brasil, o número é oferecido quase como um consolo por fascistas e historiadores condescendentes: 434 pessoas mortas e desaparecidas.
Mas Argentina, Chile e Uruguai conseguiram, uns mais, outros menos, avançar na punição dos criminosos das suas ditaduras. O Brasil nada fez, por conta da anistia de 1979.
O ambiente que se vislumbra, com uma vitória de Lula, nada assegura nessa área da reparação judicial. O Supremo já fechou todas as portas que poderiam levar à punição criminal de torturadores e outros delinquentes ainda vivos.
Mas o governo poderia oferecer, por gesto político, suporte para que se retome o que foi iniciado pela Comissão da Verdade, para que a memória da ditadura não seja esquecida.
Boric está assumindo no Chile, em circunstâncias desfavoráveis ao seu governo, um compromisso com a História.
Um novo governo democrático no Brasil, em substituição ao poder fascista de Bolsonaro, terá que também assumir compromissos.
Pela reabilitação do debate em torno do que foi a ditadura, pelo fortalecimento de lutas esparsas que ainda resgatam essa memória, pelo apoio às energias e aos afetos de todos os familiares e amigos que persistem e pelo respeito a mortos, torturados e desaparecidos.
Um novo governo democrata terá de dar conta de demandas que foram perdidas desde 2016.
O Brasil terá que voltar a dizer, sem medo, todos os anos e de forma permanente, como fazem os chilenos, que aqui houve uma ditadura sanguinária e que a impunidade ajuda a explicar o horror que ainda enfrentamos até hoje.
O esquecimento sustentou a vida tranquila de ditadores e de 377 agentes públicos (militares, policiais e outros) envolvidos em crimes de lesa humanidade entre 1964 e 1985, como torturas, assassinatos e ocultação de cadáveres.
O esquecimento nos levou às crueldades e aos crimes do bolsonarismo e à estrutura militar que tutela e sustenta um genocida.
O Brasil terá de voltar a falar de ditadura, de ditadores e de torturadores, ou assumir que é um país resignado, alienado e covarde.
Texto originalmente publicado no BLOG do autor.