Publicado originalmente no De Olho Nos Ruralistas:
Por Priscilla Arroyo
Com 4,1 mil hectares, o território do Quilombo Mesquita se localiza na divisa do Distrito Federal e Goiás, sob a jurisdição da prefeitura de Cidade Ocidental. A comunidade tradicional tem 233 anos e abriga 785 famílias, muitas cultivam a terra para garantir a produção de alimentos aos familiares. A rotina dessas pessoas — em sua maioria descendentes de escravos — poderia ser tranquila, mas se vê cada vez mais ameaçada.
Por ficar perto de Brasília, o quilombo é alvo de forasteiros e empresas do segmento imobiliário, que compram terrenos de moradores por preços módicos ou se dizem donos de grandes porções de terra na Justiça, como tentativa de legalizar fazendas inteiras dentro do território quilombola. Um dos objetivos é promover empreendimentos no local.
O prefeito Fabio Correa (PP), reeleito com 52,7% dos votos, que se considera branco e não admite a utilização do termo “quilombo”, é um dos políticos que possui glebas dentro da comunidade. Em um dos locais que ocupa, a Fazenda Mesquita, ele construiu uma casa na qual mora e onde cria e 150 cabeças de gado e 12 cavalos, declarados por R$ 684 mil.
Político declarou ao próprio TSE a propriedade no quilombo
Correa começou a sua carreira política em 2012 como vereador do município. À época, não declarou nenhum bem. Em 2016, quando arrematou a primeira eleição para prefeito, informou ao Tribunal Superior Eleitoral (TSE) ter 45 hectares de “terra nua” na Fazenda Mesquita, localizada dentro do quilombo, no valor de R$ 31 mil, e apontou ter feito R$ 67 mil de benfeitorias no local. À época, seus bens somavam R$ 433 mil.
Esse patrimônio triplicou nos últimos quatro anos para R$ 1,3 milhão. Somente no quilombo, o político afirmou ter adquirido mais 20 hectares de “terra nua” de Alencar Antonio Avelar por R$ 21 mil. Ele também declarou ter comprado 50,8 hectares em um terreno “situado na Cidade Ocidental”, por R$ 100 mil, de Edson Pereira dos Santos, cujo CPF informado à Justiça Eleitoral não é válido.
Em conversa com a reportagem do De Olho nos Ruralistas, no ano passado, Correa defendeu que a palavra quilombo não era para ser utilizada. De acordo com os moradores, trata-se de uma estratégia para enfraquecer o senso de comunidade.
O político considera Mesquita como mais um bairro da Cidade Ocidental. No seu plano de governo de 2016, propôs a construção de um “Centro de Tradições Regionais” no local, o que descreve como “local de apoio ao artesanato, a produção da marmelada e de encontro de famílias”. Sem ser concretizada, a proposta foi replicada na campanha deste ano.
“A situação não deixa de ser preocupante”, diz um morador que prefere não se identificar. “Essa reeleição dele representa um perigo para a comunidade, ainda mais em um contexto de governo Bolsonaro. Mas seguimos nos articulando para lidar com essa nova situação”.
O presidente Jair Bolsonaro já declarou que as demarcações de terras quilombolas foram uma invenção de governos de esquerda para “atrapalhar o Brasil“. Dos cerca de 3.524 quilombos existentes no País, só 154 foram titulados, e os processos contimuam estagnados.
A situação só se agrava. Bolsonaro enviou uma proposta de orçamento do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) para 2021 na qual retira 90% das verbas para o reconhecimento e indenização dos territórios quilombolas. Com isso, a dotação orçamentária cai dos atuais R$ 3,2 milhões para R$ 329,8 mil.
Moradores enfrentam constantes ameaças
Em meados de 2018, em uma eleição com indícios de fraude, o quilombola Valcilei Batista Silva assumiu a presidência da Associação Renovadora do Quilombo Mesquita (Arenquim), organização que representa judicialmente os moradores. Sua primeira ação no cargo foi assinar um documento endereçado ao Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) no qual pedia a redução de 80% do território Mesquita, de 4,1 mil para 761 hectares.
Como um dos fundadores da Arenquim, ele era aliado da comunidade, de acordo com Sandra Braga, uma das principais líderes do lugar. Mas mudou de lado em meados de 2016, quanto começou a trabalhar como enfermeiro na prefeitura de Cidade Ocidental. Sua demanda beneficiava diretamente políticos e empresários com terras no quilombo, como a Divitex Pericumã Empreendimentos Imobiliários, que tem entre os sócios o ex-presidente José Sarney (MDB) e José Garcia Bueno — um dos financiadores da campanha de Correa em 2016.
Em maio de 2018, o Incra acatou o pedido e diminuiu o território do quilombo Mesquita. Líderes quilombolas atribuíram a decisão à pressão de políticos e empresários. Um dos supostos envolvidos no lobby é o deputado federal Jovair Arantes (PTB-GO), conforme publicado na coluna de Lauro Jardim. Seu sobrinho, Rogério Arantes, era diretor do Incra à época.
Arantes é investigado por participação em esquema de pagamento de propina, no qual o seu sobrinho, Rogério, também estaria envolvido e por isso foi preso em julho de 2018 pela Polícia Federal. Vinte dias após a prisão, o Incra acatou a recomendação do Ministério Público Federal e revogou a resolução que permitia a redução de cerca de 80% do território do quilombo.
Em agosto do mesmo ano, o Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea) formulou uma carta de recomendação ao Poder Judiciário para solicitar que nenhuma decisão em relação ao processo aberto pela Divitex na Justiça Federal da 1ª Região do DF seja tomada sem o conhecimento dos moradores do Mesquita. A empresa solicita na Justiça desde 2015 que a Fazenda Água Quente, de 111,3 hectares, e a Fazenda Pecurimã, de 540 hectares, sejam excluídas do território do quilombo demarcado pelo Incra.
O Consea aponta no texto “que é conhecido o forte lobby para a expropriação de grande parte do legítimo território do Quilombo de Mesquita, por políticos locais, da esfera federal, e por interesses empresariais abusivos, o que gera perseguição moral e ameaças de morte às lideranças do quilombo, muitas delas já denunciadas a instâncias do Poder Público”.
Em 2011, Sandra Braga, uma das principais líderes do quilombo Mesquita, alegou estar sendo ameaçada de morte em razão da defesa do território da comunidade, durante audiência promovida pela Comissão de Direitos Humanos e Minorias da Câmara. À época, Sandra pediu apoio das instituições públicas (nas esferas federal, estadual e municipal) para a regularização do território que já havia sido demarcado — o que, depois de nove anos, ainda não aconteceu.