Publicado originalmente pelo Brasil de Fato:
Por Jaqueline Suarez
“Trabalho em presídios desde 1998. Tínhamos em torno de 13 mil presos nessa época, com, aproximadamente, 1,5 mil profissionais na área de saúde”, conta a enfermeira obstétrica Rosana Corrêa. Ela trabalha na Superintendência de Saúde do estado do Rio de Janeiro, responsável pelas ações de prevenção e promoção à saúde da mulher privada de liberdade. Nos últimos 20 anos, a enfermeira viu o número de encarcerados crescer e o de concursos diminuir, tornando cada vez mais difícil o atendimento básico de saúde àqueles que cumprem pena nos presídios do estado.
“Com um número de profissionais tão reduzido, fica humanamente impossível fazer um bom trabalho de prevenção.”
Com poucos recursos e com celas quase sempre lotadas, as doenças contagiosas encontram nos presídios o ambiente perfeito para se multiplicar. “Casos de tuberculose, escabiose [sarna] e pediculose [piolhos] vêm aumentando”, complementa. Nessas condições, o novo coronavírus pode se alastrar rapidamente pelo sistema prisional.
Quando o contágio comunitário começou no Brasil, no começo de março, algumas medidas começaram a ser implementadas. “Foram elaborados protocolos de atendimento às internas que apresentassem sintomas relacionados ao novo coronavírus, seguindo as orientações do Ministério da Saúde. Também foram intensificadas as informações sobre essa nova patologia”, mas esse é, segundo Rosana, “um trabalho de formiguinha, até que todas as mulheres estejam informadas”.
A decisão mais drástica aconteceu em meados de março, com a suspensão de visitas e recebimento da custódia, que engloba itens de higiene e alimentação. Agora, porém, “as bolsas trazidas pelas famílias já estão sendo recebidas com todas as precauções”. Os objetos são higienizados e só depois entregues às detentas. Já as visitas continuam suspensas.
“Luvas, máscaras, álcool gel e álcool líquido foram disponibilizados tanto para uso dos profissionais de saúde, quanto para uso dos profissionais de segurança. Para a higiene das detentas, há apenas água e sabão”.
Mulheres encarceradas
O estado do Rio tem seis unidades prisionais femininas. A maioria está na capital. Há uma em Niterói, região metropolitana, e outra no norte fluminense, em Campos dos Goytacazes. Boa parte das cerca de 2 mil mulheres que cumprem pena são mães. Algumas estão grávidas e outras retornam aos presídios poucos dias após darem à luz.
Em período de pandemia, o atendimento ao pré-natal, assim como o acompanhamento de mães e recém-nascidos, é realizado normalmente. As orientações de prevenção ao novo coronavírus do Ministério da Saúde são seguidas, “mas não há um cuidado específico”, explica Rosana. “As gestantes, puérperas [mulheres de resguardo] e bebês estão todos na Unidade Materna Infantil (UMI)”.
Na tentativa de diminuir os riscos em uma eventual propagação do vírus no sistema prisional, a Justiça solicitou habeas corpus coletivo às mulheres com mais de 60 anos. O pedido recebeu parecer positivo do Supremo Tribunal Federal (STF), na primeira semana de abril. Além de idosos, a lista inclui grávidas, mulheres que estão amamentando e, também, pessoas com doenças crônicas. A recomendação é que a pena em regime fechado seja convertida em prisão domiciliar. Até o momento, segundo Rosana, “não há casos confirmados de covid-19 nas unidades femininas do estado”.
A possibilidade de que a doença se espalhe nos presídios preocupa autoridades, mas amedronta, sobretudo, detentos e trabalhadores do sistema prisional.
“Tenho muito cuidado em todos os procedimentos, oriento a todos o tempo todo e esclareço dúvidas porque, se o vírus alcançar as unidades prisionais, vai ser um caos na saúde. Tenho muito medo disso”. Esse sentimento está também presente na hora de retornar para casa. “Tenho muito medo de me contaminar. Moro com minha mãe, que tem 87 anos, com meu filho e minha filha, jovens com 27 e 24 anos”, desabafa.
Presídios do estado
O Mecanismo Estadual para Prevenção e Combate à Tortura (MEPCT-RJ), órgão vinculado à Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro (Alerj), lançou uma nota técnica com as últimas atualizações sobre a situação das pessoas em privação de liberdade em meio à pandemia de coronavírus. No documento, integrantes do órgão afirmam que as unidades prisionais podem ser um grande foco de contágio e disseminação rápida do vírus, tendo em vista a superlotação e as fragilidades da assistência médica e social no sistema.
“O fornecimento precário de água e de insumos de higiene e a absoluta superlotação já impossibilitam o cumprimento das duas medidas de prevenção mais exaustivamente publicadas por órgãos, entidades e veículos de mídia, que são manter as mãos limpas e evitar aglomerações”, critica o relatório. O documento reúne informações coletadas desde a publicação do decreto que reconhece a situação de emergência na saúde pública em decorrência da pandemia e adota medidas de enfrentamento ao coronavírus.
Ao todo, cerca de 50 óbitos foram registrados no sistema prisional desde o início do ano, entre eles quatro mortes em uma mesma semana no Instituto Penal Cândido Mendes – unidade destinada a idosos. Há apenas dois registros de mortes por covid-19 no sistema, o de um detento e o de um inspetor, mas é possível que haja subnotificação, assim como está acontecendo fora dos presídios.
De acordo com o órgão, as condições do sistema carcerário se refletem no aparecimento de doenças respiratórias entre os presos. No caso da tuberculose, por exemplo, o índice geral de incidência na população é de 32 para cada 100 mil habitantes, enquanto no sistema prisional do estado a incidência atinge a casa dos 2 mil a cada 100 mil. Outro agravante é a presença, nesses espaços insalubres, de indivíduos em grupos de risco, como idosos e pessoas imunodeprimidas, com HIV positivo, por exemplo.
De maneira geral, o Mecanismo afirma que a Secretaria de Estado de Administração Penitenciária (SEAP) não tem condições estruturais e de pessoal para, sem apoio efetivo de outros órgãos e secretarias, conseguir implementar um plano de contingência eficaz de prevenção e combate à covid-19. Apesar de a secretaria ter publicado uma resolução com recomendações para a prevenção e o controle de infecções do novo coronavírus nas instituições (como constante higienização, etiqueta respiratória, ausência de contato, atendimento de casos suspeitos e ventilação dos espaços), o órgão da Alerj alerta que o documento carece de medidas expressas que garantam a execução dessas recomendações.