Presos são submetidos a métodos medievais de tortura em presídio de Mato Grosso

Atualizado em 25 de fevereiro de 2021 às 8:36

Publicado no Brasil de Fato

A visita surpresa e a coleta de depoimentos ocorreram entre os dias 14 e 16 de dezembro de 2020, mas o relatório só foi finalizado há cerca de 10 dias – Corregedoria-Geral de Justiça de MT

Corregedoria-Geral do Tribunal de Justiça do Mato Grosso (TJ-MT) confirmou a prática sistemática de tortura e espancamentos de presos na penitenciária Osvaldo Florentino Leite Ferreira, conhecida como Ferrugem, em Sinop, cidade de 146 mil habitantes no norte do estado.

Os detalhes constam em um relatório de inspeção, realizado por uma comissão formada por juízes, auxiliares e defensores públicos.

A visita surpresa e a coleta de depoimentos ocorreram entre os dias 14 e 16 de dezembro de 2020, mas o relatório só foi finalizado há cerca de 10 dias, para conclusão dos exames médicos realizados nos presos.

Ao todo, foram ouvidos 72 presos, escolhidos por um critério de amostragem que incluiu integrantes de todas as alas da unidade. Desse total, 67 relataram práticas semelhantes de tortura e espancamentos, com práticas de caráter medieval.

“O relatório fala, por exemplo, que havia dinâmicas de tortura com uma metodologia chamada chantily, que é a aplicação de spray de pimenta nos olhos da pessoa presa, utilização também de ferramentas, desde cacetetes até um instrumento denominado ‘garfo do capeta’ usado contra os corpos dessas pessoas”, aponta Lucas Gonçalves, assessor jurídico da Pastoral Carcerária Nacional.

Também foram relatadas a prática de um ritual de espancamento coletivo anual no presídio. Diversos agentes foram acusados diretamente, incluindo o então diretor e o chefe de disciplina da unidade.

O pacote de agressões incluía o uso indiscriminado de armamento não-letal usado para ferir os detentos e até mesmo o uso do pau de arara, um método conhecido de tortura, utilizado largamente durante a ditadura militar (1964-1985), em que os prisioneiros são amarrados em uma barra de ferro, com os tornozelos e pulso atados, permanecendo nessa posição até que o sangue não circule mais, o corpo inche e ele passe a ter dificuldade de respirar.

Brasil de Fato conversou com um dos integrantes da comissão que realizou a inspeção, que preferiu não se identificar. Segundo ele, a tortura era uma prática institucionalizada no presídio.

“Era como se fosse uma política do estabelecimento, algo institucionalizado mesmo”. Além disso, praticamente não havia fiscalização externa do que acontecia lá dentro, o que gerava um ambiente de impunidade e de estímulo ao ciclo de tortura sem fim.

“Importante mencionar que vários servidores do sistema prisional apresentaram depoimento perante os magistrados, confirmando as agressões aos presos o que, aliado às filmagens dos depoimentos, fotos e exames de corpo de delito, indicam a ocorrência de tortura sistêmica na unidade”, diz o relatório.

Afastamento

A denúncia sobre as diversas violações que vinham sendo cometidas na unidade prisional foi feita pela Pastoral Carcerária no final de novembro.

Após a inspeção, a Secretaria de Estado de Segurança Pública (Sesp) afastou 12 pessoas do presídio, incluindo o diretor, o vice-diretor, o chefe de disciplina e outros agentes acusados de maus-tratos.

O relatório aponta superlotação e falta de higiene nas celas, além do racionamento de água, como condições que ferem a dignidade humana de quem cumpre pena no local.

Superlotação

Com capacidade para 326 detentos, a penitenciária de Ferrugem está atualmente com cerca de 880 presos, o que representa 269% de sua ocupação máxima. Em geral, cada ala do presídio possui duas celas com um total de oito camas de concreto e dois banheiros, e este é espaço dividido por 50 a 70 presos, informa o relatório.

No dia da inspeção, a comissão designada pela Corregedoria relatou ter encontrado muita sujeira acumulada nas celas, umidade e falta de ventilação.

“Detectamos a propagação de insetos, pragas e transmissores de doenças, dentre as quais foram visualizados em muitos presos a ocorrência constante de micoses nos pés e pitiríase do tipo ‘pano branco’ nas costas”.

A falta de água, segundo o relatório, é uma situação crônica na unidade, o que obriga os presos a estocarem o líquido em baldes de plástico diariamente. As instalações dos banheiros são precárias e a estrutura do prédio como um todo está avariada.

Em relação às violências e torturas, pessoas com hematomas, marcas e narrativas sobre esse tipo de ocorrência foram identificadas no trabalho da comissão.

Homofobia

Diversas denúncias de agressões e o não respeito aos direitos da população LGBTQIA+ foram relatadas. Em um caso, os presos denunciaram que determinados servidores entravam nas celas sem qualquer motivo, já partindo para a agressão e utilizando termos homofóbicos.

Uma mulher trans que havia entrado recentemente no presídio teve os cabelos raspados, mesmo tendo apresentado à unidade seu processo de troca de nome, em clara violação à Resolução nº 348 do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), que estabelece, expressamente, dentre outros direitos, a possibilidade de manutenção dos cabelos compridos das pessoas transexuais presas.

Segmentação religiosa

A comissão da Corregedoria do TJ-MT identificou uma segmentação religiosa entre presos da unidade. Em uma ala reformada recentemente, presos vinculados à igreja evangélica Assembleia de Deus eram alocados. No local, diferente de todas as outras alas do presídio, esses detentos tinham seus direitos garantidos, como um espaço mais organizado e limpo, e acesso à educação e trabalho.

“Eram aquelas celas que as organizações que faziam as vistorias anteriormente no presídio acabavam sendo levadas, dando a impressão de que tudo estava bem dentro do presídio. Os presos que não estão nessa ala, contudo, não têm esses mesmos direitos, sofrendo as agressões relatadas anteriormente e estão em alas precárias e insalubres, inclusive com lixo acumulado”, afirma a Pastoral Carcerária.

Brasil de Fato procurou a Corregedoria do TJ-MT para saber quais serão os desdobramentos a partir desse relatório, mas ainda não obteve retorno.

“A gente vai incidir no Tribunal de Justiça para eventualmente responsabilizar o Juízo da Execução Penal, se for caracterizada a responsabilidade dele. Da mesma forma, vamos incidir na Defensoria Pública para garantir o direito das pessoas presas e buscar eventual responsabilização dos servidores e da direção da unidade prisional que praticaram os atos de tortura”, aponta Lucas Gonçalves, da Pastoral Carcerária.

Segundo ele, apesar de terem sido afastados do presídio Ferrugem, tanto os servidores quanto os ex-diretores não chegaram a perder os cargos e foram removidos para outra unidade prisional.