Se existe uma tradição que a se consolida na Europa quando o assunto é Brasil, é do repertório ditatorial que Jair Bolsonaro alimenta a cada dia.
Em artigo desta segunda-feira no semanário português Expresso, o colunista Lourenço Pereira Coutinho se questiona sobre a relação entre “Bolsonaro e o futuro da democracia brasileira”.
Para ele, “a incapacidade política de Jair Bolsonaro tornou-se ainda mais evidente” ao longo do tempo, chegando a um ponto em que “a erosão do executivo a que preside é alarmante”.
O historiador caracteriza a erosão política de Bolsonaro por uma sequência de acontecimentos recentes: “Se a passagem de Regina Duarte pela secretaria da cultura foi apenas patética, as demissões de Luiz Henrique Mandetta e Sérgio Moro são já reveladoras de um executivo em implosão”.
“Bolsonaro não respeita evidências científicas, despreza a separação dos poderes, e as regras éticas do jogo político”, afirma Coutinho. Ele aponta uma perigosa interação entre religião e ditadura: “prisioneiro dos seus dogmas e de uma visão maniqueísta da sociedade. Um político com estes predicados só não se torna ditador se não o deixarem.”
Para ele, o vice é também um motivo de preocupação: “Homem respeitado nos meios militares, Mourão já deu a entender que via com bons olhos uma intervenção do exército, e a transição para um novo modelo político. Assim, um possível impeachment de Bolsonaro, livraria o Brasil de um presidente grotesco, mas não afastaria a possibilidade de uma transição de regime, já que seria o general Mourão, como vice presidente, a assumir a chefia de estado durante o resto do mandato.”
“A democracia brasileira enfrenta o seu maior desafio desde 1985, data do fim da ditadura militar”, afirma, sobre um país acostumado a um militarismo interventor.
Distinto pelo menos no plano interno da terra de Trump: “O exército, instituição estruturante da sociedade brasileira, tem um historial de intervenção política, ao contrário do que sucede, por exemplo, nos Estados Unidos, onde as forças militares estão claramente subordinadas ao poder civil e são fiéis à democracia, sistema que têm defendido em vários palcos internacionais. Ou seja, apesar de serem gémeos políticos, Bolsonaro e a sua entourage são mais perigosos para a democracia do Brasil, do que Trump e o seu inner circle para a democracia dos Estados Unidos”.
“Num país enfraquecido por uma corrupção política generalizada, por um sistema partidário decadente, por uma sociedade politicamente descrente, e onde parte do exército pondera apoiar uma intervenção, o que resta para defender a democracia brasileira?”, pergunta.
No último sábado, o mesmo Expresso disse que “Bolsonaro ameaça com golpe militar no Brasil” em meio aos ataques do presidente e seu filho Eduardo às investigações da justiça, questionando se a expressão “ruptura institucional”, tornada corriqueira, ainda faz sentido.
No Jornal Económico, o articulista António Freitas de Sousa afirma que a “militarização do regime é consequência da perda de apoio de Bolsonaro”. Ele observa que “ministros que não cumprem as exigências do presidente vão sendo afastados”, enquanto “os que mantêm a confiança estão a pôr em causa a separação de poderes”.
O colunista diz que os apoiadores de Bolsonaro vão se “transformando numa espécie de turba confessional”, num momento de queda de adesão popular, em que o “exército é a última fronteira de suporte para o presidente do Brasil”.
Ele vê na dinâmica das relações palacianas um caráter medieval: “Bolsonaro está a cair na tentação de afastar os ministros que não lhe prestam a vassalagem que tem vindo a exigir e de os substituir por militares que, pouco vocacionados para os temas tutelados pelos ministérios para que são enviados e pouco à vontade com os avatares da política caseira, nada mais podem fazer senão seguirem sem reserva as vontades do chefe do governo”.
O Jornal de Notícias destacou que “Brasil soma mais de 29 mil mortos e Bolsonaro cavalga para os apoiantes”.
O diário português observa que “Bolsonaro viola decreto”, ao juntar-se neste domingo “a um grupo de manifestantes, em Brasília, sem recorrer ao uso de máscara, contrariando assim um decreto do governo do Distrito Federal, que obriga ao uso daquele material de proteção contra o vírus em espaços e vias públicas”.
O periódico descreve o presidente brasileiro como “um dos líderes mais céticos em relação à gravidade da atual pandemia”.
E aponta o comportamento de seus apoiadores, que “ergueram cartazes em defesa de medidas inconstitucionais e antidemocráticas, como o encerramento do Congresso e do Supremo Tribunal Federal (STF), assim como uma intervenção militar”.
É ao ditador italiano Benito Mussolini que o brasileiro Ruy Castro, colunista do jornal português Diário de Notícias, compara Bolsonaro nesta segunda-feira.
O jornalista aponta dois momentos anteriores do fascismo na história brasileira. O do governo Getúlio Vargas: “No Brasil, a palavra definiu com grande propriedade o ditador Getúlio Vargas (1937-1945), que promoveu o culto à personalidade nos moldes de Salazar, fechou o Congresso, aboliu o voto, matou opositores e, já com a Segunda Guerra em curso na Europa, flertou abjetamente com o nazismo e dificultou a entrada de refugiados judeus no país”.
E da ditadura militar: “A palavra definiu também os militares que, em grande parte da ditadura de 1964 a 1985, governaram sem eleições, sem Congresso, sem habeas corpus e com torturas e ‘desaparecimentos’ nos porões das Forças Armadas”.
Define o fascismo a partir do nacionalismo, na crença numa conspiração global contra os valores e as riquezas de seu país, onde os comunistas são os que não seguem tais diretivas.
“Por isso, e por não confiar no mercado, que é internacionalista, apoia uma pesada intervenção do Estado na economia. Combate ferozmente os políticos e os juristas, que, para ele, não passam de um bando de corruptos exceto, claro, os que servem o seu líder – este, sempre um político e/ou militar carismático, com discurso ‘patriota’, messiânico, moralizante e escorado em valores imprecisos, como ‘Deus’, ‘família’ e ‘honestidade’”.
Elementos do cotidiano atual brasileiro: “O fascista pratica o culto da ação e da violência e prega o armamento do ‘povo’ contra uma hipotética ditadura. Na verdade, visa à tomada de um poder acima da lei e até do Exército – a própria ditadura. Disfarçadamente ou não, patrocina desfiles motorizados (aqui, chamados de ‘carreatas’) com militantes embrulhados nas cores nacionais buzinando e berrando palavras de ordem pelos alto-falantes, tentando dar a impressão de que tem o ‘povo’ ao seu lado”.
O colunista explica que adaptou de uma enciclopédia do pensamento político publicada nos anos 1960 a descrição do fascista típico, que “tem um desagradável odor familiar. Adequa-se perfeitamente à figura de Jair Bolsonaro”, com um aparelhamento estatal destinado “a eternizá-lo no poder”.
Questionável é a afirmação de que “todo o poder judiciário, toda a grande imprensa” estão contra Bolsonaro, quando o procurador Augusto Aras é acusado de proteger Jair Bolsonaro de denúncias formais e a Record segue enaltecendo-o com titulos do tipo “’Estarei onde o povo estiver’, diz Bolsonaro após atos deste domingo”.
Ele lembra o fim de Benito Mussolini, abrindo uma perspectiva trágica para o próprio bolsonarismo: “A receita de fascismo por Mussolini, seguida por Bolsonaro, deu certo por muitos anos. Mas, um dia, terminou com Mussolini pendurado em praça pública de cabeça para baixo.”
Essa leitura da imprensa portuguesa permite ver que Bolsonaro leva o Brasil ainda mais para trás no seu modo de governar. Ele figura não apenas como uma referência às ditaduras fascistas, mas se torna um presidente cruzado.
Leva o Brasil do século XXI ao século XI, para o tempo das cruzadas. Um presidente que resgata, incorpora e impõe sempre o que há de pior na história da Europa e do mundo. Nada cria, apenas destrói.