Privatização do Ibirapuera cede patrimônio da cidade de SP a especulação imobiliária

Atualizado em 2 de dezembro de 2020 às 18:57
Protesto contra a privatização do Ibirapuera. Foto: Reprodução

Publicado originalmente no site Rede Brasil Atual (RBA)

POR CLÁUDIA MOTTA

Ao negar o tombamento do Complexo Esportivo do Ibirapuera, por 16 votos a 8, o Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico (Condephaat), abriu espaço para a privatização desse aparelho público voltado há mais de 60 anos para atividades de esporte, lazer e cultura. O ginásio e todo o complexo, inclusive o paisagístico no entorno, fazem parte da área do Parque do Ibirapuera, lembra a arquiteta e urbanista Nilce Aravecchia. “Foi tudo concebido em conjunto, nos anos 1950, quando da comemoração do quarto centenário da cidade de São Paulo”, explica a professora. O ginásio foi projetado pelo arquiteto Ícaro de Castro Mello, que fazia parte do Movimento Moderno em arquitetura e urbanismo conhecido pela figura de Oscar Niemeyer.

“Esse imaginário moderno estava relacionado a todo um esquema de modernização da vida na metrópole. No sentido de pensar São Paulo como um lugar cosmopolita, que trouxesse programas de uso, de atividades relacionadas às artes, à cultura. Assim como as grandes bienais de artes, o Museu de Arte de São Paulo (Masp), o Museu de Arte Moderna (MAM)”, detalha Nilce. “Nesse aspecto, o esporte também fazia parte dessa cena metropolitana. E aí entra a necessidade da construção de um ginásio com capacidade de grande público para desenvolvimento de atividades de esportes em ambientes fechados. E conta com 60 anos de história abrigando atividades esportivas e culturais: importantes shows, atividades de cultura de massa.”

Reforma e privatização

Em 2010, o ginásio passou por um processo de reforma e reorganização. O Governo do Estado de São Paulo gastou, à época, mais de R$ 30 milhões com as obras e o complexo foi reaberto em maio de 2011. Sete anos depois, o então governador Geraldo Alckmin (PSDB) lança o edital de concessão que avança agora sob o governo do também tucano João Doria.

“Parece bastante curioso que pouco tempos depois tenha sido lançado esse edital que de lá para cá tem sido objeto de discussões”, considera a professora do Departamento de História da Arquitetura da FAU-USP. Um movimento importante foi feito por arquitetos, esportistas, integrantes da sociedade, solicitando o tombamento por parte do Condephat. “Esse pedido não foi aceito. E deliberou pela continuidade desse processo de concessão bastante questionável porque coloca como destinação para todo o complexo a remodelação para abrigar atividades de comércio e gastronomia. E coloca em risco a própria existência do complexo. O pedido de tombamento asseguraria que mesmo em situação de concessão privada daquele espaço, algumas características arquitetônicas fossem preservadas. E isso foi desconsiderado pelo Conselho.”

Conselho tomado

Em artigo publicado no mesmo dia da decisão do Condephaat, segunda-feira (30), o jornalista Juca Kfouri contesta a decisão do Conselho que abriu espaço para a privatização do Ibirapuera. “Onde houver aparelhos públicos encravados em bairros chiques, como o estádio do Pacaembu e o ginásio do Ibirapuera, a sanha privativista prevalece”, critica. “Assim foi com o Pacaembu, assim será com o Ibirapuera, que acaba de ver negada, por 16 a 8, o tombamento de seu parque esportivo pelo Condephaat. Decisão anunciada hoje por um colegiado, tomado por indicados do governador e com redução dos assentos da universidade, apesar do irretocável parecer a favor do tombamento do Arquiteto Urbanista, Mestre em História e Doutor em História da Arquitetura, e professor de Projeto e História da Arquitetura da Universidade de São Paulo / Campus São Carlos, Renato Anelli.”

Juca observa que cada vez mais os conselhos deixam de cumprir o papel de defender o interesse da comunidade para servir aos governos de plantão. “Que se danem os motivos que levaram as construções dos equipamentos esportivos. Os interesses negociais prevalecem.”

Direito Interditado

Nilce concorda. “A questão fundamental que fica é pensar quais interesses estão por trás dessa concessão e da inviabilidade do tombamento do complexo. E por outro lado refletir o que significa colocar em risco um patrimônio arquitetônico que é emblemático”, critica.

“O Ibirapuera caracteriza que a prática do esporte é de direito do cidadão paulistano, inclusive como atividade profissional. Pensando no ginásio como abrigo de atividades de treinamento para equipes profissionais. Então, a ideia de fazer uma concessão privada desse local, assim como aconteceu com o estádio do Pacaembú, sinaliza de uma maneira muito negativa a ideia de que o direito à prática do esporte em sua versão profissional seja assegurado apenas àqueles que podem pagar, reduzindo a possibilidade de implantar programas públicos de esporte e lazer de maneira mais ampliada, democratizada.”

A professora reforça que cabe ao Estado viabilizar esse acesso à pratica profissional do esporte aos setores de menor renda, com espaços públicos destinados a essas atividades. “Conceder o Ginásio do Ibirapuera à iniciativa privada, portanto, sinaliza uma interdição desse direito à pratica esportiva. Passa a ser um direito privado  só para aqueles que podem pagar. O que desvirtua a própria ideia do esporte e do lazer com um direito de cidadania, um direito público.”

Mentalidade privatista

O discurso utilizado por parte dos governos tucanos na cidade e no estado de São Paulo, para defender a concessão do Ibirapuera, é de que o setor público despende muitos gastos para manutenção e reformas necessárias. “Tudo isso é parte dessa mentalidade privatista que transforma o serviço público, o direito público em negócio que viabilize ganhos de setores muito específicos da sociedade, que têm interesse. Sobretudo setores do capital imobiliário”, afirma Nilce Aravecchia. “Mentalidade muito característica do PSDB e de sua condução do estado e da prefeitura de São Paulo. Que transforma todo e qualquer serviço público em mercadoria, em negócio, retirando esses serviços do campo dos direitos cívicos, de construção de justiça social, no sentido de ampliar o direto ao esporte, ao lazer e à cultura para as pessoa mais pobres.”

A professora da FAU destaca que consta da peça de concessão a palavra ‘shopping’. “Isso indica uma diretriz de transformar o Complexo do Ibirapuera, que foi construído para o esporte, o lazer e a cultura, em mais um templo do consumo nessa cidade. E aí fica a pergunta: uma cidade que conta com tantos shoppings e tão poucas áreas públicas para a prática do esporte e lazer, se essa cidade precisa de mais um shopping e se ela suporta também a privatização selvagem de seu patrimônio público.” No domingo (6), foi convocado um ato de protesto contra a privatização do Complexo Esportivo do Ibirapuera. Será a partir das 9h, sob a #abraceoibirapuera. Os organizadores avisam: atleta não se compra em shopping.