“Privatização envolve muita corrupção”, diz economista francesa ao DCM sobre renacionalização da empresa de energia

Atualizado em 28 de julho de 2022 às 11:55
A EDF, Electricité de France, maior produtora e distribuidora de energia da França

Os liberais mais convictos reconhecem que setores como a eletricidade são estratégicos demais para estar nas mãos do capital privado, na França.

A Assembleia Nacional do país aprovou nesta terça-feira o orçamento para nacionalizar a empresa francesa de eletricidade (EDF). O governo da primeira-ministra Elisabeth Borne havia anunciado o projeto no último dia 6.

Segundo a economista francesa Emmanuelle Auriol, a medida se inscreve numa ambição histórica do país que remonta ao pós-Guerra, isto é, “tornar a França independente do ponto de vista energético”.

Num mundo fragilizado pela Guerra na Ucrânia e o aquecimento global, a professora da Toulouse School of Economics considera estratégico que o Estado tenha o controle total desse tipo de empresa. “O Estado francês precisa de meios para decidir que tipos de energia a França vai ter. É mais fácil quando se tem uma empresa pública.”

Segundo a especialista, a independência das leis de concorrência do mercado justifica a medida. “A eletricidade é um setor que por essência não é de concorrência. Não se sabe estocar energia elétrica, é algo que demanda muita intervenção, muita regulação, centralizada e inteligente para evitar penúrias, apagões, acidentes”, explica a especialista em entrevista ao DCM.

A decisão de Paris contrasta com a privatização da Eletrobras. Se no Brasil, a privatização da companhia foi considerada como “preço de banana” até pelo ministro Vital do Rêgo do Tribunal de Contas da União, para Emmanuelle Auriol, diversas hipóteses podem explicar o movimento.

“Penso que os países em desenvolvimento como o Brasil têm limitações diferentes. Em geral, o que eles buscam é aumentar a capacidade instalada, conectar mais gente e mais regiões, que haja eletricidade no conjunto do país e para isso requer capitais”, diz.

“A privatização em certos contextos envolve também muita corrupção. Eu não conheço em detalhes a privatização feita nesse contexto do Brasil. Se ela é rentável, comprar uma empresa pública com preço baixo é evidentemente um presente enorme.”

DCM: O ministro francês da Economia afirmou que a racionalização da EDF é uma maneira de “ser mais independente” nos próximos anos. Como interpreta essa declaração?

Emmanuelle Auriol: Uma empresa 100% pública porque por enquanto EDF já pertence majoritariamente ao Estado francês. É o acionista principal. Quando há acionistas privados, as regras de gestão são bastante diferentes em relação a uma empresa 100% pública.

Para ter um pouco mais de liberdade, o governo francês fez a escolha de comprar a porcentagem que lhe faltava dessa empresa.

Ter mais liberdade para fazer o quê?

Há problemas que vemos hoje, relacionados à tensão da Guerra na Ucrânia, mesmo se os problemas de aprovisionamento em energia são estruturais.

Mesmo se não houvesse a Guerra na Ucrânia, há o fim das receitas do petróleo, o esgotamento dos recursos naturais, de energia rica e densa como o gás, o problema do aquecimento global.

Tudo isso faz com que seja necessário encontrar energias alternativas limpas e que permitam à França não depender de ditaduras como a Rússia. A energia nuclear faz parte dessas soluções.

A energia nuclear permitiu à França ser relativamente autônoma depois da Segunda Guerra Mundial em termos de energia elétrica, até mesmo ser excedentária.

Já era o caso antes da Guerra na Ucrânia, mas agora ficou mais evidente que o Estado francês precisa de meios para decidir que tipos de energia a França vai ter. É mais fácil quando se tem uma empresa pública.

Em que os acionistas constituem um impedimento para isso?

Não são os acionistas. É a legislação que vigora sobre as empresas cotadas na Bolsa. Ainda mais, a França está submetida à lei da concorrência europeia, que são bastante estritas. Uma empresa que não é 100% pública tem menos liberdades.

(A renacionalização) não vai mudar completamente as coisas. Vai facilitar um pouco as coisas.

Emmanuelle Auriol
A economista Emmanuelle Auriol. Foto: Toulouse School of Economics


Recentemente, o Estado francês comprou de volta uma parte da EDF que havia vendido à General Electric e agora anuncia a renacionalização da empresa de energia. Como lê esse movimento?

Os dois são diferentes. De um lado, a General Electric otimizou seu portfólio, livrando-se da fabricação de turbinas, que são importantes para nós. Também em função do tecido industrial local, o Estado preferiu não deixar essa empresa ir à falência e ser desmantelada.

Quanto à nacionalização da EDF, em primeiro lugar a empresa está muito endividada. Ela precisa ser socorrida. É mais fácil quando o único acionista é o Estado. Ele pode salvar uma empresa sem ser acusado de concorrência desleal pelas autoridades do setor.

Ela deve fazer novos investimentos, nas usinas elétricas nucleares, o que é muito custoso. Então há questões de soberania nacional e autonomia energética diante da Rússia e segurança, pois o nuclear é potencialmente perigoso se não for feito de modo seguro.

Os sindicatos temem que essa nacionalização seja um meio para o Estado conduzir uma gestão liberal. Esse temor faz sentido para você?

Esse projeto dá sequência a outro, chamado Hercules, que visava a reestruturar a empresa, colocando todo o setor hidroelétrico numa empresa à parte. Na Europa, as empresas dedicadas a usinas hidrelétricas não precisam ser colocadas em concorrência. Como a EDF não quer abdicar das usinas que temos na França, ela quer mantê-las para evitar a concorrência com uma empresa que só tenha usinas.

Uma outra empresa seria criada. Muitos setores olharam para esse projeto com ceticismo porque dava a impressão de separar o que era rentável do que não era, fazer entrar acionistas no setor de renováveis para financiar outros projetos. Houve as eleições presidenciais. O projeto foi abandonado mas permanece a necessidade de reestruturar a EDF, porque a empresa teve perdas consideráveis.

As dívidas às quais faz referência têm a ver com a capitalização da empresa?

Não, têm a ver com escolhas infelizes que custaram muito caro. Tem a ver com uma estratégia muito agressiva no plano internacional de comprar empresas, transformando a EDF num mastodonte, um dos maiores produtores de energia no mundo. Isso custa caro.

Em último lugar, para evitar o desmantelamento da EDF diante da concorrência do mercado europeu, o governo francês é obrigado a aceitar a regulamentação europeia que obriga a EDF a vender a energia nuclear a um preço determinado quando o mercado quiser, quando o preço do kilowatt estiver muito elevado.

Há essa tarifa, investimentos infelizes e projetos de investimentos consideráveis que levaram a empresa ao déficit.

O Brasil acaba de privatizar sua empresa de energia elétrica. É surpreendente quando se observa o movimento do Estado francês?

A energia no mundo é um setor muito complicado porque é preciso fazer investimentos extremamente pesados, antecipar a demanda, porque esses investimentos levam tempo para se tornar realidade, como para fazer uma usina, uma central nuclear. Prever com muitos anos de antecipação é difícil porque há reveses, crises e que a oferta seja igual à demanda em permanência. Precisa-se de um equilíbrio permanente.

A eletricidade é, portanto, um setor que por essência não é de concorrência. Não se sabe estocar energia elétrica, é algo que demanda muita intervenção, muita regulação, centralizada e inteligente para evitar penúrias, apagões, acidentes.

Em geral, a motivação para fazer entrar acionistas privados é trazer capitais. Era essa inclusive a ideia do projeto Hercules que queria separar a distribuição de energia e energias renováveis. Suponho que no caso do Brasil seja a mesma coisa.

Esse é um dos motores da privatização no mundo. O segundo motor são empresas ineficazes, obsoletas.

É o melhor a se fazer diante do mesmo contexto da Guerra na Ucrânia?

O contexto brasileiro é bastante diferente do contexto francês. Somos pequenos, não um grande país como o Brasil. Temos obrigações estipuladas pela União Europeia, o que não é o caso do Brasil. Por isso, temos a ambição de nos autonomizar. Já era essa a ambição do pós-Segunda Guerra, tornar a França independente do ponto de vista energético. Não é a motivação do Brasil.

Penso que os países em desenvolvimento como o Brasil têm limitações diferentes. Em geral, o que eles buscam é aumentar a capacidade instalada, conectar mais gente e mais regiões, que haja eletricidade no conjunto do país e para isso requer capitais.

A privatização em certos contextos envolve também muita corrupção. Eu não conheço em detalhes a privatização feita nesse contexto do Brasil. Se ela é rentável, comprar uma empresa pública com preço baixo é evidentemente um presente enorme.

Em geral, a motivação é a corrupção ou atrair novos investimentos para infraestruturas.

A corrupção à qual faz referência é dar grandes empresas públicas a amigos?

Se olharmos o caso russo durante a transição, os oligarcas são formados nesse momento. Não são grandes empresários. Pessoas que compraram a baixo custo, valores simbólicos, o porto de São Petersburgo, aeroportos. Isso era corrupção. Transferir bens públicos gratuitamente a algumas pessoas para enriquecê-las é corrupção.

Nos países pobres, o objetivo em geral é atrair investimentos. Por que é mais difícil atrair investimentos em países pobres? Porque as instituições são mais frágeis, então os direitos de propriedade são mais frágeis. Os capitais então ficam paralisados por 50 anos. Disso, os investidores não gostam. Então essas privatizações funcionam mais ou menos.

O Estado perde meios de agir ou sua soberania pulverizando uma empresa pública de energia na bolsa de valores?

Depende do contexto. Eu não penso que ele perde sua soberania se ele puder regular suas empresas. O controle é menos direto quando ela é privada. Há uma vantagem enorme para os países em desenvolvimento em relação aos acionistas privadas.

Um grande problema para empresas de energia em países em desenvolvimento é não cobrar faturas de energia elétrica e há muitos pobres. A vantagem das empresas privadas é que elas são mais rigorosas, há uma melhora de performance na coleta de faturas, de eficácia de utilização do capital instalado. Mas em geral, isso favorece os ricos e não os pobres.