Procurador-geral da República defende que Estado indenize fotógrafo que PM deixou cego. Por Caê Vasconcelos

Atualizado em 12 de junho de 2020 às 19:05
Os fotojornalistas Alex Silveira (à esq.) e Sérgio Silva (à dir.) | Fotos: Sérgio Silva/Alex Batista

Publicado originalmente no site Ponte Jornalismo

POR CAÊ VASCONCELOS

O Estado tira a sua visão enquanto você está trabalhando. Um tiro de bala de borracha no seu olho esquerdo. Você fica cego, você perde o olho. Você, fotojornalista, cobria um ato na cidade de São Paulo. Sua visão é essencial para o seu trabalho. Anos e anos de briga na Justiça e a única resposta que você recebe é que a culpa disso é sua. Não do Estado. Não do policial militar que atirou em você.

Com um intervalo de 13 anos, essa é a história de dois fotojornalistas. Alex Silveira perdeu 80% da visão do olho esquerdo em julho de 2000, enquanto cobria uma greve de professores. O mesmo aconteceu com Sérgio Silva, quando foi atingido, também no olho esquerdo, por um tiro da PM enquanto cobria as jornadas de junho de 2013.

A espera para Alex é de 20 anos; para Sérgio, 7 anos. Nesse tempo, Alex ganhou o caso na primeira instância do Tribunal de Justiça de São Paulo, mas perdeu na segunda, recorrendo ao STF (Supremo Tribunal Federal). Sérgio, por sua vez, perdeu nas duas primeiras tentativas, também recorrendo ao STF para tentar modificar a decisão de que, em vez de vítima, é culpado pela violência que sofreu.

Agora, o entendimento do procurador-geral da República, Augusto Aras, sobre o tema pode ajudar no processo de ambos os fotojornalistas violentados pela arma dita não-letal da Polícia Militar de São Paulo. Aras deu um parecer favorável à indenização de Alex.

À Ponte, Alex Silveira conta que, se tiver uma vitória positiva no seu caso, que será julgado pelo STF, a vitória não será apenas dele. “Não sou só eu. Tem eu, tem o Sérgio e mais um monte de pessoas que vieram depois. É muito maior do que pessoas individualizadas”, pondera.

“É abrir precedentes. Seria fantástico se isso fosse julgado agora, o momento em que todo mundo está falando de liberdade de imprensa, mostrar como uma situação dessa não é legítima”, diz Alex.

“Se eu for culpado por levar o tiro… como pode? É tão sem sentido, até para a Física. Como eu posso ser culpado por colocar a cara na frente de uma bala? A bala teria que ter saído, eu visto e aí corrido para enfiar meu rosto na frente”, ironiza o fotógrafo.

No recurso extraordinário, Augusto Aras afirma que “o jornalista não deu causa ao tumulto, nem dele participou” e que “é insatisfatório o argumento de que, em razão de a manifestação popular ter deixado de ser pacífica, estaria plenamente justificado qualquer uso da força pública, tendo a vítima, apenas por permanecer no local de conflito, assumido o risco do dano, a excluir a responsabilidade do ente público”.

O procurador-geral da República ainda argumenta que “é inadequado atribuir ao jornalista culpa exclusiva pelo dano, que foi reconhecido como oriundo de conduta de agente público, somente por permanecer realizando a cobertura jornalística da manifestação popular em que ocorreu tumulto”.

Aras afirma que o fotógrafo deve ser indenizado “pelos danos que lhe foram causados, devolvendo-se os autos ao Tribunal de origem a fim de que, afastada a caracterização de culpa exclusiva da vítima, sejam fixados os valores a ele devidos a título de reparação”.

Para Sérgio Silva, o posicionamento de Aras é uma luz no fim de um longo túnel escuro que ele e Alex estão há anos. “Por que só uma luz no fim do túnel? Por que não é uma decisão, é uma sinalização, é um posicionamento”, explica. “Ele [Augusto Aras] opinou, mas é uma opinião muito importante para uma decisão favorável”, argumenta.

“Por isso eu não comemoro como uma batalha vencida, como algo que mudou o sistema Judiciário, porque não é isso que aconteceu. Só vai ser possível comemorar algo positivo quando o TJ-SP fizer justiça: reparar o dano e o erro que o Estado causou na vida do Alex”, aponta.

Sérgio deseja que isso reflita no processo dele e, otimista, afirma que espera que os órgãos tenham uma lição de que esse tipo de violência, praticado pelo Estado, precisa ser exterminado. “Se isso acontecer, o Estado tem que ser responsabilizado como qualquer cidadão civil que comete um delito.”, completa.

Lucas Andreucci, advogado que acompanha o caso de Sérgio, avalia que a posição do PGR é favorável. “Embora seja uma opinião e ainda não tenha começado o julgamento, tem fundamental importância, pois representa, no fim das contas, a opinião do Ministério Público Federal”.

“Assim, na ação do Alex Silveira, caso seja reconhecida a responsabilidade objetiva do Estado por ferimentos causados a profissionais de imprensa na cobertura de manifestações populares e afastado o argumento defensivo de que o repórter ou fotojornalista se colocou em situação de perigo, a decisão deve ser aplicada ao caso do Sérgio”, explica o advogado.

“Minha vida mudou completamente”

A vida de Alex Silveira mudou completamente depois que ele perdeu a visão do “único olho bom”. Ele deixou de trabalhar com fotojornalismo, mudou de cidade e, atualmente, começou a cursar um novo curso: oceanologia. Apesar de ter mudado de área, ele aponta: “Eu estou em um universo que eu sempre gostei muito, que é natureza, preservação do meio ambiente”.

“Isso mudou literalmente a forma de ver as coisas, mudou as possibilidades de trabalho. Eu já fui morar na Amazônia, voltei da Amazônia, fui morar no Rio de Janeiro, voltei para a Amazônia e agora estou morando em Rio Grande, no Rio Grande do Sul”, relembra o fotógrafo.

Ele nunca pensou em desistir do caso, mas, não trabalhar com jornalismo, define, é perder a liberdade. “Hoje eu não posso mais dirigir, passei a vida inteira fotografando e perdi isso. Tive que ouvir o juiz dizer que eu não tive perda econômica nenhuma. Se eu dependesse disso para viver… eu estava perdido”.

Já Sérgio Silva, continua atuando no fotojornalismo, mas já pensou em desistir do caso diversas vezes. “Isso atinge diretamente todos os dias. Principalmente quando eu tenho que lidar com essa batalha”, confessa.

“Eu já passei por momentos que foram extremamente depressivos. Chegou um momento em que eu não conseguia mais pensar, não conseguia mais lidar, em que eu já pensei muitas vezes em abandonar essa história, deixar para trás tudo isso e tocar a minha vida de outra maneira”, lamenta.

A deficiência, causada pela ausência do olho esquerdo, dificulta o trabalho do fotojornalista. “Eu já me encontrei em diversas situações de dificuldade técnica. No jornalismo, tudo é muito ágil, muito rápido, e isso me cansa um pouco. Me desgasta fisicamente um pouco mais, principalmente em relação ao olhar”.

“Embora tenham me arrancado um olho, me sobrou outro e me deixaram com a capacidade de pensar. Enquanto o meu cérebro pensar, puder provocar trabalhos, eu vou continuar”, finaliza Sérgio.

“A justiça falhou e deixou que o erro fosse repetido”

Para a advogada Denise Dora, diretora-executiva da ONG Artigo 19, que defende a liberdade de expressão e de acesso à informação, o parecer de Augusto Aras é importante não só para o caso de Alex Silveira, mas para todos os casos parecidos, como é o de Sérgio Silva.

“Para o procurador, o fato de ele [Alex] estar em uma manifestação, cobrindo como profissional fotográfico, não significa e não deve significar um risco de vida ou de lesão policial”, explica.

“Aras diz que é responsabilidade do Estado não só fazer a proteção da própria manifestação, mas dos profissionais de comunicação que estão fazendo a cobertura. O acesso à informação é um direito humano universal que tem que ser respeitado”.

A opinião do PGR, explica Denise, representa um avanço muito importante na responsabilização do Estado e das forças de segurança em garantir o direito à livre manifestação e à imprensa livre.

A demora na resolução dos casos, explica a advogada, mostra uma justiça falha. “A justiça impede que as pessoas violem a lei, mas fundamentalmente tem o papel reparador: se aconteceu uma coisa errada, se a pessoa foi vítima, ela tem que ser imediatamente reparada, inclusive para que não aconteça de novo”, aponta.

“Quando um processo leva muito tempo, significa uma justiça falha. É uma justiça que não conseguiu evitar que isso acontecesse em manifestações posteriores, como é o caso do Sérgio”, finaliza.