Por que a já famosa foto de Lula feita por Gabriela Biló saiu na capa da Folha? Não, não foi porque agora, no mundo digital, tudo é manipulável.
O jornalismo já lidou e ainda lida com muita manipulação em textos e imagens. Essa não é uma área imune a manipulações desde priscas eras analógicas. Nunca foi, nunca será.
A questão agora é outra. É quando uma fotografia na capa do maior jornal do país, como realidade alterada, vira uma tese, não pelas verdades que contém, mas pelas mentiras que carrega junto com a ideia de que aquilo é fotojornalismo. Não é, nunca vai ser.
Fotos mentirosas, publicadas pelo jornal Notícias Populares, nos 60 e 70, nunca iriam virar tese. Porque eram, por consenso, mentirosas.
A foto de Lula (que não vou compartilhar aqui) é uma invenção do mundo dos profissionais com titulações que tomaram conta do jornalismo. E suas fotos viram teses. É a piração da realidade paralela apropriando-se da realidade.
Os que piram não são jornalistas com títulos e diplomas, mas gente de todas áreas que invadiram as redações.
O que seria bom para o jornalismo, porque sofistica abordagens, e bom para os leitores (e a própria Folha prova que é), acabou se transformando num problemão. Essa foto é um problemão.
O fotógrafo raiz, que era formado nos laboratórios dos jornais (ou eram boys de redação que passavam a fotografar), sumiu e foi sendo substituído pelo profissional com superformação. Assim a vida evolui em todas as áreas.
Pesquisadores, especialistas, pós-isso e pós-aquilo estão na linha de frente de batalhas que eram de cascas duras. Os jornais agora abrigam autores de teses, como parece ser o caso de Gabriela Biló.
Assim somem os fotógrafos de fatos reais e surgem os fotógrafos de fatos possíveis, com imagens superpostas no que chamam de múltipla exposição, que nem novidade é.
O jornalismo, que precisa ser simples, vira uma instalação sujeita a leituras várias.
Fazem isso com eclipses, disse a autora da foto. Fazem com bailarina dançando, em que as imagens multiplicadas mostram a sequência de movimentos. Fazem muito isso.
Lula não é um eclipse, nem bailarino. Mas o Brasil esteve sob a ameaça de um eclipse do qual Lula nos salvou.
A conclusão da Folha de que aquilo era uma alegoria publicável fez com que o jornal publicasse a montagem como algo banal.
Lula está cercado por milicianos, militares e terroristas? Então vamos nós dar o tiro que eles não dão em Lula.
A Folha atirou em Lula. A foto provocou uma sequência de explicações pretensamente acadêmicas. Bem fraquinhas, como as da própria autora.
O jornalismo prescinde de explicações do que é mostrado em textos ou imagens, ou deveria prescindir. Jornalismo não tem as nuances da literatura, mesmo que dela beba bastante.
E não há como comparar a foto com outras só aparentemente semelhantes. A foto clássica de Jânio com os pés virados para dentro é o que é.
Aquela foto de Erno Schneider não precisa de legendas e de argumentos que a defendam como verdadeira, porque não foi manipulada.
As fotos que flagram presidentes como se estivessem com os quepes dos militares postados atrás deles, que todo fotógrafo já fez em eventos em Brasília, é uma leitura, a representação de uma ideia de militarização ou submissão.
A foto de Gabriela é uma representação desastrosa em tempos de fake news e das tentações da imagem digitalizada. É uma imagem em cima da outra.
É uma fraude da imagem de Lula associada, como atentado, à imagem de um acontecimento dramático recente.
Talvez estivesse bem, mas só talvez, como esforço de representação artística do momento brasileiro, em uma bienal. Não na capa da Folha, associada a ações terroristas e a um ataque que todo fascista gostaria de fazer ao presidente.
A foto poderia até estar, talvez pudesse, ao lado de fotos de Rochelle Costi, a artista visual gaúcha que morreu atropelada em São Paulo e que também era fotógrafa.
As imagens em cortinas, com figuras da floresta, da exposição ‘A terceira margem’, são fotos com mil informações (foto acima).
Mas as belas fotos de Rochelle não têm a pretensão de ser jornalismo. São a arte com sua força e beleza conectada à realidade, que fala sem precisar de textos e explicações.
Quando Gabriela precisa de mil palavras para explicar o que quis dizer numa imagem (e ainda bem que não falou de metaimagem), é porque sua obra é no mínimo controversa como jornalismo. Poderia ser outra coisa.
O jornalismo tenta mimetizar todas as artes e já se carnavalizou várias vezes. Mas não pode querer ser o que não é. Ou, dito de outra forma, uma fotomontagem nunca pode querer competir com a imagem jornalística de um momento grave.
A Folha sabe que tem mais de mil fotos de 8 de janeiro, sem manipulações, com mais força jornalística e mais verdade do que a foto publicada.
Publicado originalmente em Blog do Moisés Mendes