“Que tipo de amor é esse?”, rebate indígena após declaração apaixonada de Damares

Atualizado em 23 de janeiro de 2019 às 16:21

Publicado originalmente no Brasil de Fato

Joênia Wapichana, deputada federal indígena, questionou declaração de ministra enquanto governo ataca direitos de povos originários / Agência Brasil

POR CRISTIANE SAMPAIO

A ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos (MDH), Damares Alves, e o governo de Jair Bolsonaro (PSL) voltaram a ser alvos de críticas de movimentos indígenas nesta quarta-feira (23). Durante a abertura de um evento realizado pela Procuradoria-Geral de Justiça (PGR), em Brasília (DF), a ministra afirmou que pretende dialogar com o Ministério Público Federal (MPF) e com as entidades que atuam na defesa dos direitos indígenas.

“Fica garantido a todos vocês: o diálogo está aberto. O governo Bolsonaro veio buscando diálogo. Acho que nos primeiros dias isso ficou bem demonstrado”, disse Alves.

Logo após a abertura do evento, que debate, ao longo do dia, os direitos constitucionais dos povos tradicionais, lideranças indígenas afirmaram à imprensa que a declaração da ministra expõe uma contradição do atual governo.

“Na prática, você editar uma medida provisória que desestrutura todo um avanço dos direitos constitucionais é contraditório [ao fato de] falar que está aberto ao diálogo. Existiu uma ausência da consulta aos povos indígenas”, disse Joênia Wapichana, deputada federal eleita e liderança indígena.

A declaração da futura parlamentar é uma referência à Medida Provisória 870/2019, editada por Bolsonaro nos primeiros dias de governo. O dispositivo promoveu diferentes alterações na estrutura administrativa do Poder Executivo federal, com extinção de órgãos e junção de outros.

Durante a mesa de abertura do evento desta quarta-feira, Damares afirmou, apesar disso, que as políticas públicas do MDH serão “movidas por grande paixão”. Ela disse ainda que é “uma ministra que ama demasiadamente os povos indígenas”.

“Que tipo de amor é esse? Essa é a nossa indagação. Um amor que ameaça, que coloca em risco vidas, povos em isolamentos voluntários que tiveram sua possibilidade de proteção retirada de dentro da Funai, com retirada da competência da fiscalização [por parte do órgão] e, principalmente, que os expõe ainda mais a uma vulnerabilidade. Qual é esse amor que a gente tem?”, questionou Wapichana.

Entre as alterações, o governo retirou da Funai a atribuição de identificar e demarcar terras indígenas. Entidades, especialistas e movimentos populares têm destacado que a mudança esvaziou a pasta. A novidade veio se somar ao caldeirão das polêmicas que envolvem Bolsonaro e as pautas indígenas.

O líder do PSL ficou conhecido, em especial nos últimos anos, também por conta de declarações que questionam os direitos dos povos tradicionais, como indígenas e quilombolas.

A função de demarcação de terras da Funai foi transferida para o Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (Mapa), pasta, que, tradicionalmente, sofre grande influência do agronegócio. Agora, o Mapa está sob o comando da ruralista Tereza Cristina, coordenadora da Frente Parlamentar Agropecuária (FPA), que reúne deputados e senadores ligados ao agronegócio.

Durante o evento, Luiz Eloy Amado, representante da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), reforçou a preocupação da entidade com o conflito de interesses que envolve a nova configuração do Executivo.

“O agente público, ao agir na máquina pública, deve estar regido por alguns princípios, entre eles a impessoalidade. Como é que vão ficar esses interesses da questão indígena diante do interesse do agronegócio?”, questionou.

Ausência

Outro ponto de destaque no evento da PGR desta quarta-feira foi a ausência da ministra Tereza Cristina, que havia sido convidada para compor a primeira mesa de debates do evento, que discutiu “O estatuto constitucional dos direitos indígenas e o direito internacional”. À imprensa, a assessoria de comunicação dela informou que a ministra teria sido convocada para uma reunião de emergência no Palácio do Planalto.

Luiz Eloy Amado disse que a participação de Tereza Cristina no evento seria fundamental para que as comunidades pudessem ter acesso a informações sobre os planos do governo Bolsonaro para as comunidades.

“Não foi uma reunião muito produtiva porque nós estávamos aguardando um posicionamento da ministra. Os povos indígenas estão com inúmeras questões, dúvidas sobre como vai proceder a implementação da política indigenista no governo Bolsonaro. Nós vimos aqui a oportunidade justamente de dialogar, de sanar essas dúvidas, o que não aconteceu. A gente sai com uma perspectiva muito ruim”, completou Eloy.

Além da ausência de Tereza Cristina, Damares Alves não respondeu a perguntas feitas pela plateia durante o debate no evento e saiu sem falar com a imprensa.

Funai

Em passagem pelo evento, o presidente da Funai, Franklimberg de Freitas, foi questionado pela imprensa sobre a transferência das competências do órgão para o Mapa. Ele não se posicionou a respeito da mudança e disse que depois, na parte final do evento da PGR, irá apresentar argumentos e mais informações a respeito do tema.

Sobre o fato de o movimento indígena não ter sido ouvido a respeito das alterações, ele respondeu que “foi uma decisão do Poder Executivo”. “Essa modificação que ocorreu agora não é a primeira. Agora estamos dentro do processo de evolução da política indigenista no país”, disse.