Por J. Carlos de Assis
Fico impressionado quando vejo gente como Henrique Meirelles, Armínio Fraga, Pedro Malan e outros porta-vozes do mercado financeiro se arvorarem em árbitros da política econômica em defesa do terrorismo fiscal. Exceto Meirelles, que teve longa passagem pelo Banco Central, a maioria dos que exerceram esse cargo nos últimos anos teve passagem recente e fracassada nele. E Meirelles, vamos e venhamos, simplesmente surfou numa onda internacional favorável.
A política monetária interna, com reflexo direto no câmbio, tem sido uma gangorra. Para alegria dos importadores e desespero dos trabalhadores e de nossa indústria, sobretudo a de bens de capital, Meirelles produziu um longo ciclo de valorização cambial, do que resultou, agora, um dos principais itens da pauta de Lula: a reindustrialização. Por fim, houve o surto de terrorismo fiscal de Temer e Paulo Guedes, e de favorecimento excepcional eleitoreiro de exportadores, especialmente do agronegócio, nos últimos anos.
O que fica, de tudo isso, de legado para a economia brasileira em termos estruturais? Nada. Não construímos infraestrutura, destruímos políticas sociais, produzimos 33 milhões de miseráveis que não têm o que comer. O mercado não reclamou de nada disso. Não obstante, temos a economia com maior potencial do mundo, inequivocamente, para tomar o rumo do crescimento sustentável a altas taxas e com justiça social. Por que não tem sido possível fazê-lo? Por razões fiscalistas, fundamentalmente ideológicas.
Insista-se. Temos, sim, o maior potencial de recursos naturais do planeta, abundantes fontes energéticas (inclusive verdes), mão de obra sobrando, grandes universidades e institutos de pesquisa, tecnologia com grau médio de desenvolvimento: se tudo isso for mobilizado de forma integrada para o crescimento, como se fez na China, teremos certamente uma expansão adequada da economia, capaz de dar conta da elevação da renda per capita, da redução das desigualdades sociais e do combate à pobreza.
Entretanto, o grande óbice é a ideologia fiscalista. Temos medo de mobilizar recursos fiscais para aumentar a produção. É a prevalência, com décadas de insistência, da “economia da especulação” financeira sobre a “economia da produção”. Ou a prevalência do monetarismo clássico e renegado de Milton Friedmann sobre uma visão moderna segundo a qual, mesmo numa economia capitalista, quando se reúnem planejamento e investimento público responsáveis, é possível crescer de forma acelerada com relativa estabilidade. Fizemos isso nos anos 70!
São visões opostas da economia. Os monetaristas usam o cristal da moeda, enquanto os desenvolvimentistas, o do mercado real. O objetivo é crescimento com estabilidade – ou restauração da estabilidade para crescer. Uma visão realista da economia sustenta que o que garante estabilidade é o equilíbrio entre oferta e procura no mercado real. O graal é a oferta de alimentos, para evitar aumento do custo de vida. Para os monetaristas, porém, a estabilidade é fruto da relação entre o fluxo periódico de moeda injetado na economia pelo governo e os fluxos monetários e financeiros totais correspondentes.
É daí que vêm os preconceitos fiscalistas. Se a instabilidade do mercado é um desequilíbrio entre oferta (déficit público) e demanda de dinheiro, uma das formas de reduzir essa instabilidade é reduzir a disponibilidade de dinheiro no mercado pelo corte de gastos públicos, que induzirão menores gastos também no setor privado, tendo em vista o efeito multiplicador negativo do setor bancário. A consequência, naturalmente, é recessão, desemprego e desindustrialização recorrentes.
Já a visão desenvolvimentista parte da constatação oposta. Se a inflação – ou a ameaça dela – resulta de um desequilíbrio entre oferta e demanda no mercado real, a forma de evitá-la, sobretudo quanto ao custo de vida, é pelo aumento da produção (notadamente de bens e serviços alimentares), com investimentos a taxas de juros baixas e de longo prazo, e não pelo corte da demanda (procura). Isso evita um efeito cumulativo de queda do PIB, do emprego e da própria demanda, assegurando estabilidade e crescimento sustentável. Claro, não é tão simples assim. Entretanto, o arcabouço geral é esse para economias sem restrições externas.
O passo seguinte é, pois, verificar a questão das restrições externas. E a economia brasileira, no momento, tem poucas. A oferta energética está praticamente resolvida, tendo em vista nossa capacidade de investimentos em energia hidráulica e verde (notadamente, eólica e solar). Temos recursos produtivos abundantes, que asseguram uma relevante fonte de produção interna e de excedentes exportáveis. Temos um volume considerável de reservas internacionais, que podem ser usadas como garantias de crédito externo, junto com os excedentes do agronegócio. E, se não temos tecnologia do primeiro mundo, podemos ter acesso a elas através de esquemas de parcerias internacionais como o modelo tripartite dos anos 1970.
Portanto, estamos diante de uma equação simples. Se há produção correspondente, e recursos materiais disponíveis, não é preciso temer o gasto público acima da receita. Para o curto prazo, basta uma concentração de gastos e investimentos, públicos e privados, na produção alimentar, para evitar efeitos inflacionários, notadamente aumento do custo de vida. Para os médios e longos prazos, o aumento inevitável da demanda resultante de investimentos em infraestrutura deve também ter como contrapartida um excedente de produção e de oferta a curto prazo.
Em termos materiais, e não como base de especulação financeira, somos um importante atrativo para investidores de todo o mundo que querem realizar lucros na produção. É o que nos interessa. E é, efetivamente, uma questão de nos organizarmos para isso. Acredito que Lula, com a equipe que está montando, vai fazê-lo. Os ideólogos do livre mercado continuarão vociferando, com apoio dos jornalões e da grande mídia conservadora. Entretanto, o Brasil é muito grande. Imenso mesmo. “Eles, da especulação, passarão! Nós, da produção, passarinhos!”