O editorial do Estadão dizendo que Jair Bolsonaro e Lula “nasceram um para o outro” e “enxergam o mundo e seu papel nele da mesmíssima perspectiva” é um clássico instantâneo.
Um dia depois de mandar seus repórteres abandonarem o cercadinho por agressões de fascistas, o velho matutino volta à comparação esdrúxula que fez durante a campanha entre Haddad e Bolsonaro (“Uma Escolha Muito Difícil”).
Esses textos de opinião não se materializam a partir do nada, evidentemente. Jornalistas perpetram essas peças vergonhosas.
Quem são eles?
São velhos generais que ficam num curralzinho, bem distantes dos colegas que se expõem num outro curral a milicianos que obedecem ordens do “mito”.
Em 2016, falamos desses homens e do modus operandi da coisa.
O repórter Pedro Zambarda apurou que eles ficam numa ala separada da redação, em cubículos com mesa e telefone.
“A sala deles lembra uma cabine de pornô do centro da cidade”, disse um editor.
São oito ou nove profissionais — quem morre ou sai não é necessariamente substituído — chefiados por Antonio Carlos Pereira, sobrinho de Oliveiros S. Ferreira, ex-diretor do jornal.
Os nomes: Nicolau Cavalcanti, José Nêumanne Pinto, Lourenço Dantas Motta, José Eduardo Faria, Antonio Ferreira Paim, Jorge Okubaro, Marco Zuckerman, além do professor de filosofia da USP Rolf Kuntz.
Pereira responde diretamente para Fernão Lara Mesquita, filho de Ruy, morto em 2013.
Fernão é conhecido por ter desfilado num protesto pelo impeachment ostentando orgulhoso um cartaz escrito “Foda-se a Venezuela”.
A jornalista Cileide Alves fez um excelente levantamento sobre o papel da mídia no golpe em Dilma, publicado no Observatório da Imprensa em 2016.
Um trecho:
O Estadão, que publica três editoriais por dia contra um no tempo de Collor, chegou a dedicar os três várias vezes para seus ataques.
A imparcialidade que o Estadão cobrou em 1992 foi esquecida agora. Também não se preocupou com o uso do impeachment por grupos adversários como trampolim para ascender ao poder.
O jornal paulista publicou 83 editoriais sobre o tema neste período. Foi o mais duro contra o governo, Dilma, Lula e o PT como em O asceta de Guaranhuns, em que diz ser “notável o atrevimento com que o personagem [Lula], que ficou rico na política, se apresenta como monopolista das mais pristinas virtudes”. (21/1/16)
Repete o ataque em 29 de janeiro: “Lula sempre foi conhecido pela liberalidade e indulgência com que trata questões éticas” e em A farsa desmontada (2/2/16), ao dizer que Lula não é o homem honesto que dizia ser. (…)
Escreveu que Lula e Dilma vivem “aos berros”. Referiu-se aos militantes petistas e de movimentos sociais pró-governo como “tigrada”; acusou o governo de tentar um “golpe de Estado” com a nomeação de Lula para ministro-chefe da Casa Civil e Dilma de promover uma “guerra ao Estado de Direito” por se dizer vítima de um golpe.
A palavra “tigrada”, ensina o professor Juremir Machado da Silva, sociólogo pela Sorbonne, tem origem nos escravos que carregavam excrementos em barris para desová-los.
Por causa das marcas nas costas causadas pelo escorrer das fezes, ficaram conhecidos como “tigres”.
Estão todos “cumprindo ordens”. É a banalidade do mal.
A voz do dono, bem traduzida. Qual a diferença, na essência, entre isso e o bolsonarismo?
Na prática, nenhuma.
Foda-se a Venezuela — e também a ética, o bom senso, o jornalismo e o Brasil.