Ele escreveu com pincel um romance porque acha que sua caligrafia pode futuramente valer dinheiro
A revista digital americana Humanities entrevistou o escritor chinês Mo Yan alguns meses antes que ele se tornasse Nobel de Literatura de 2012. É uma conversa reveladora sobre um escritor que, embora de fama internacional, é inteiramente desconhecido dos brasileiros. Nem um único livro de Mo — na China o nome da família vem primeiro — foi editado no Brasil. Pedimos autorização para publicar a excelente entrevista abaixo, traduzida por Camila Nogueira.
Mo Yan é um pseudônimo. Qual é o significado em chinês e o que representa para você? O uso de um pseudônimo o ajudou a narrar sua própria vida, assim como a vida de seu país?
Mo Yan – Em chinês, Mo Yan significa ‘não falo’. Eu nasci em 1955. Na China, nessa época, a vida das pessoas não era normal. Então meu pai e minha mãe me disseram para não falar lá fora. Se você falasse lá fora, e dissesse o que pensa, iria se prejudicar. Então escolhi Mo Yan como meu pseudônimo. É irônico que eu o tenha escolhido porque agora falo por todo lugar.
Sua carreira de escritor começou logo depois do fim da Revolução Cultural Chinesa terminou. O que esse novo período significou para os escritores chineses e para você?
Mo Yan – Sem essa nova era na China, eu não teria minha escrita. A modificação que ocorreu nos anos 80 me deu a oportunidade de escrever muitos livros. Antes de 1980, os escritores chineses eram intensamente influenciados pelos escritores soviéticos. Durante os anos 80, passaram a ser influenciados pela literatura europeia e americana. Por experiência própria, afirmo que as reformas foram acontecimentos maravilhosos para a China.
Você foi descrito, algumas vezes, como um “realista mágico” e comparado com autores como Franz Kafka. Ao mesmo tempo, é considerado um realista social, que nos Estados Unidos pode sugerir uma influência de William Faulkner ou de John Steinbeck. Ou seria preferível discutir seus laços com os clássicos chineses?
Mo Yan – Acho que meu estilo é parecido com o do escritor americano William Faulkner. Aprendi muito com os livros dele. Mas meu estilo combina diversas influências. Eu vivi no interior até os vinte e poucos anos. A literatura do povo e os contadores de histórias me influenciaram enormemente. As histórias que minha avó, meu avô, os velhos, meu pai e minha mãe me contaram mais tarde se tornaram recursos de pesquisa. Jornada para o Ocidente e Sonhando com a Câmara Vermelha foram clássicos chineses que também me serviram como influência.
[Em um discurso no dia anterior ao da entrevista, Mo Yan afirmou: “Em 1984, em uma noite invernal na qual nevava muito, peguei um livro de Faulkner – O Som e a Fúria. Eu li uma versão chinesa traduzida por um tradutor famoso … as história que ele escreveu eram sobre sua cidade natal e sobre a zona rural. Ele encontrou um condado que você não pode nem mesmo encontrar em um mapa. Embora tal condado seja muito pequeno, é representantivo. Isso fez com que eu percebesse que, se um escritor que estabelecer a si mesmo, deve estabelecer sua própria república. Ele criou seu próprio condado, assim como eu criei uma vila no nordeste da China, com base em minha própria cidade natal, e estabelecendo nela meu domínio. Após Faulkner, ocorreu-me que minha experiência própria, minha própria vida naquela pequena vila, isto tudo poderia se tornar história e literatura. Minha família, as pessoas que conheço, os moradores da vila – todos eles podem se tornar meus personagens”.]
Seus romances colocam-se em oposição à história. Por quê?
Mo Yan – Meus primeiros romances descreviam a vida na China nos anos 30. Embora eu estivesse escrevendo livros históricos, tinha um olhar de escritor moderno, ideias e pensamentos sobre o passado vindos de alguém de hoje em dia. A história em meus romances é recheada com meu próprio caráter, meu próprio temperamento. Eu sempre tive alguma divergência com, digamos, os fatos históricos. Meus leitores devem obter literatura, não história – história árida – de meus livros.
Hoje em dia parece que a história da humanidade é escrita mais através da literatura e do drama do que pela narração histórica. Você acha que, em alguns séculos, será um recurso para historiadores?
Mo Yan – No futuro, suponho que as pessoas que estudarão história irão ler os livros de história de verdade. Mas, se você quiser saber sobre uma época muito distante e sobre o que as pessoas sentiam, suas vidas cotidianas, então deverá pesquisar esse tipo de coisa na literatura. Se as pessoas ainda lerem livros em algumas centenas de anos, elas poderão descobrir tudo sobre a vida cotidiana das pessoas. Os livros históricos têm foco nos eventos e nos tempos, mas a literatura tem um foco maior na vida e sentimento das pessoas.
Você escreveu um romance em quarenta e dois dias com um pincel em vez de um computador. Teria sido diferente se tivesse escrito em um computador?
Mo Yan – Um computador teria me atrasado, porque quando uso um sou incapaz de me controlar. Sempre pesquiso para encontrar mais informações. Quando uso um computador, a entrada é pelo pinim [pinim é um sistema que romaniza as letras chinesas]. É diferente do uso de caracteres porque limita seu vocabulário. Então pensei que, se só usasse meu pincel e minha própria letra, algo bom sairia de mim. Outra razão é que ouvi que a caligrafia das pessoas, especialmente dos famosos, pode valer um bom dinheiro no futuro. Então vou deixar para minha filha. Talvez ela consiga um dinheirinho.
Quando alguém pensa em humor, não há nada mais difícil do que passá-lo para páginas. E é particularmente difícil quando você está falando ou escrevendo sobre eventos desagradáveis. E, ainda assim, o humor pode falar para a alma de modo mais revelador do que declarações do fato. Você considera o humor como sua maior força?
Mo Yan – Se você quer descrever um sentimento, como dor e sofrimento, você pode usar palavras dolorosas ou pode usar palavras humorísticas. Acho que a maior parte dos leitores prefere ler frases bem humoradas sobre uma vida dolorosa. Não importa o quão difícil fosse nossa vida, as pessoas no meu vilarejo usavam um grande senso de humor para lidar com a aspereza da vida. Eu aprendi tudo isso dessas pessoas.
Você disse que a salvação de um escritor já estabelecido é a procura pelo sofrimento. O sofrimento é diferente na China de hoje em dia, quando comparada aos tempos antigos?
Mo Yan – Acho que, desde os humanos estejam vivendo, há dor. Eu sofri bastante quando era pequeno porque não tínhamos comida o suficiente, nem roupas o suficiente – foi uma época bem difícil. Eu falo para a minha filha: “Veja o que eu tinha na minha infância; agora você tem tudo. Então por que se sente triste? Por que sofre?” Ela me respondeu:“Você acha que só porque pessoas têm o suficiente para comer e tem roupas elas não tem o direito de ser felizes? Nós temos tantas tarefas, temos que passar em tantas provas difíceis, e não conseguimos encontrar o namorado certo. Acho que esses sofrimentos são ainda piores do que passar fome”. Então acho que, enquanto houver humanos, a dor e o sofrimento de seu coração e sua mente estarão lá. A literatura serve para mostrar para as pessoas que o sofrimento sempre estará lá.
Qual é o estado atual da literatura chinesa, e em que direção você acha que ela está indo?
Mo Yan – As pessoas acham que os anos 80 foram a era de ouro da literatura chinesa. Até mesmo um romance curto ganhava atenção de todo o país. Durante os anos 90, era tudo sobre finanças e negócios. Após a internet entrar na China, todos os jovens começaram a passar a maior parte de seu tempo online. O número de pessoas que liam a literatura em si passou a diminuir: há mais estilos alternativos de escrita do que nunca. Acho que é seguro falar que, agora, muitos jovens estão escrevendo e que há muitos, muitos estilos diferentes. A situação agora é mais como nos Estados Unidos e na Europa. Uma coisa notável é que muitos jovens passaram a publicar seus romances online. A China tem 300 milhões de pessoas publicando em seus próprios blogs. Os artigos são muito legais, muito bons.
Deixe-me terminar notando que a maior parte dos americanos lêem os livros chineses traduzidos. Você trabalhou com um tradutor literário chamado Howard Goldblatt, que traduz muito graciosamente. Mas existem coisas que, na translação entre duas linguagens muito difíceis, mandarim e inglês, se perdem?
Mo Yan – Na literatura, tenho certeza de que, quando alguma linguagem é traduzida para outra, algumas coisas vão ser perdidas na tradução. Tenho sorte por meus livros serem traduzidos por aquele cavalheiro, que é um especialista famoso e influente na literatura chinesa. Ele é meu amigo há muitos anos, então conhece muito bem meu estilo.