Publicado originalmente no Brasil de Fato
No jogo político que circunda a reforma da Previdência do governo de Jair Bolsonaro (PSL), batizada tecnicamente de Proposta de Emenda Constitucional (PEC) 6/2019, segmentos sociais e especialistas defendem diferentes iniciativas como contraponto possível à medida para alavancar a economia nacional.
Nesse cenário, desponta como um dos destaques a ideia de uma reforma tributária solidária, ainda pouco conhecida entre outros setores, dado o caráter denso do tema. O movimento de defesa da pauta envolve, entre outros atores, a Associação Nacional dos Auditores Fiscais da Receita Federal (Anfip), a Federação Nacional do Fisco (Fenafisco), a Frente Parlamentar Mista em Defesa da Previdência Social e centrais sindicais.
Entusiasta da proposta, o presidente da Anfip, Floriano Martins de Sá Neto, explica que a concepção se fundamenta na Constituição Federal de 1988, que prevê um sistema progressivo e democrático de cobrança de impostos, diferentemente do que se tem no Brasil.
Pelo referencial constitucional, as obrigações tributárias precisariam ser diretamente vinculadas às pessoas, à renda, e seriam aplicadas de acordo com as possibilidades de contribuição de cada estrato social. O paradigma adotado no país inverte a ordem e, principalmente, impõe alta incidência de taxas sobre o consumo e uma tabela de cobranças de impostos que tira menos da população de mais alta renda.
“A gente tem justamente o contrário [do que traz a Constituição]: nosso modelo é regressivo. Então, a [ideia de] solidariedade aparece como uma estratégia: se a gente conseguir que a classe de cima, aqueles que ganham mais, sejam minimamente solidários, nós não precisamos impor aos mais pobres ou à classe média mais e mais sacrifícios”, explica o presidente da Anfip.
No Brasil, os impostos indiretos, ou seja, sobre o consumo, representam 16,84% do PIB – acima dos países da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), cuja média é de 10,90%. Nesse caso, a cobrança é igualitária: ou seja, todas as classes sociais pagam o mesmo percentual de impostos para consumir bens e serviços, indiferentemente da capacidade contributiva de cada uma.
“Imposto sobre consumo tem esse problema. Um quilo de feijão tem o mesmo custo tributário para uma pessoa de baixa renda e uma de alta renda. Então, a constatação é muito clara: se nós não transformarmos o sistema tributário num sistema que redistribua riqueza via tributação justa, nós vamos continuar patinando e praticando uma injustiça fiscal, que é o outro lado da injustiça social”, defende Floriano Neto.
A cobrança indireta sobre o consumo também representa 49,68% da carga tributária bruta do país, enquanto, na OCDE, esse índice é de cerca de 32%. Como contraponto, os defensores da reforma solidária propõem que o país reveja os percentuais e reduza esse tipo de arrecadação para cerca de 12% do PIB e 36% da carga bruta.
“Ao fazer isso, a gente poderia potencializar a economia interna. O consumo das classes baixas seria potencializado”, sublinha Roni Barbosa, da direção nacional da Central Única dos Trabalhadores (CUT), acrescentando que isso contribuiria para uma melhora da qualidade de vida da classe trabalhadora.
Imposto de Renda
Outras medidas também são consideradas essenciais. Para o Brasil atingir um patamar de justiça fiscal, as entidades consideram que seria preciso remodelar a tabela do Imposto de Renda (IR).
Os especialistas calculam que o país poderia adotar a seguinte configuração: os 11 milhões de pessoas que recebem até quatro salários mínimos deixariam de pagar IR; os 14 milhões com renda entre quatro e 15 salários pagariam imposto menor; os 3 milhões que recebem entre 15 e 40 salários seguiriam com as taxas atuais; enquanto as 750 mil pessoas que ganham acima de 40 salários, que são as de renda mais alta, teriam que pagar imposto maior.
Arrecadação
Essa reestruturação da cadeia tributária teria potencial também para oxigenar a saúde financeira dos cofres públicos, ao contrário da baixa na arrecadação que se poderia supor por conta da redução dos impostos sobre o consumo.
“Na média, não haverá um prejuízo para a União ou para o estado. A arrecadação será a mesma ou a arrecadação da União será maior ainda porque, se as pessoas vão pagar menos impostos, elas vão consumir mais e a economia volta a girar, e podemos ter até o início de uma retomada do crescimento econômico, que não estamos tendo hoje”, pontua o deputado Ênio Verri (PT-PR), membro da Frente Parlamentar Mista pela Reforma Tributária e da Comissão de Finanças e Tributação da Câmara.
As entidades projetam que o país poderia elevar em R$ 253,7 bilhões as receitas de tributação sobre a renda e reduzir em R$ 231 bilhões as de tributos sobre bens e serviços. Também poderia elevar em R$ 73 bilhões a tributação sobre o patrimônio e diminuir em R$ 78,7 bilhões os tributos sobre a folha de pagamentos.
Desigualdade
A lógica da desigualdade é um fator preponderante no sistema tributário nacional. Com uma cobrança elevada em cima das camadas mais baixas e taxas mais modestas para aqueles de renda mais alta, o Estado acaba legitimando um modelo que incentiva a lógica a desigualdade. O país cobra, por exemplo, apenas 1,80% de incidência de impostos sobre transações financeiras e 4,44% sobre propriedade.
Além disso, entre os membros da OCDE, somente Brasil e Estônia não tributam lucros e dividendos. Um estudo divulgado em abril deste ano pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) calcula que, caso criasse uma alíquota sobre esses itens, o país poderia aumentar a arrecadação de R$ 22 bilhões para R$ 39 bilhões – montante que poderia ajudar a reduzir a desigualdade social, segundo os especialistas.
O país está em 10º lugar no ranking dos mais desiguais do mundo, de acordo dados da ONU. E o problema está no centro das preocupações não só de especialistas, mas também da sociedade em geral: uma pesquisa da Oxfam realizada pelo instituto Datafolha neste ano mostrou que 67% dos brasileiros entrevistados consideram que a prioridade governamental deveria ser a redução das desigualdades. Além disso, 61% opinaram que o país deveria reduzir impostos sobre bens e serviços e aumentar o IR dos segmentos mais abastados.
Nesse sentido, num grau comparativo entre a PEC 6 e a ideia de uma reforma tributária solidária, o deputado Ênio Verri considera que a proposta do campo popular superaria a reforma da Previdência de Bolsonaro em diferentes aspectos, especialmente na capacidade democrática da ideia, quesito que ele destaca como ausente na proposta do governo.
“Quando você vê a reforma da Previdência como ela é colocada, o rico é quem ganha R$ 2.200, até porque ela tira o direito de receber o PIS [abono salarial] para quem ganha entre um e dois salários mínimos. Então, o que é preciso? Discutir uma reforma tributária de verdade e, caso ela ocorresse, não precisaríamos de maneira nenhuma dessa reforma da Previdência”, avalia.