A notícia de que milhares de pessoas tomaram a vacina AstraZeneca vencida alarmou a população nessa sexta-feira (02). De acordo com a Folha de S. Paulo, 26 mil doses do imunizante foram aplicadas nessas condições nos postos de saúde do Brasil.
A reportagem do DCM TV conversou sobre o assunto com o epidemiologista Jesem Orellana, da FioCruz de Amazônia.
Jesem não descarta que algumas doses pudessem de fato estar nessa condição, dada a desorganização do governo, principalmente o federal, no trato da pandemia, mas não acredita no número divulgado pela reportagem.
O epidemiologista credita esse número à falta de qualidade dos dados disponíveis no sistema (openDataSus). “Uma coisa é o que acontece na vida real e outra, o que está no sistema”, diz Jesem.
“Esse sistema tem registros de pacientes internados por Covid-19 em 2019 e pessoas vacinadas com a 2ª dose antes da primeira, o que evidentemente são erros de digitação, mas que impactam na hora da consolidação dos dados”.
Orellana não acredita que tenha sido essa a quantidade de vacinas vencidas efetivamente aplicadas, primeiro porque tanto alguns pacientes teriam condições de fazer essa verificação quanto principalmente os profissionais envolvidos na aplicação o fariam e denunciariam a situação: “Estamos falando de 30 mil doses e muitas pessoas teriam condições de perceber o atraso: tanto os pacientes quanto os profissionais de Saúde”.
Outro aspecto abordado pelo epidemiologista é o fato das fabricantes de vacinas trabalharem com uma margem de segurança em relação aos prazos anunciados da validade e a data de vencimento real de seus produtos.
O infectologista Marcos Caseiro ratifica que existe essa prática: “A indústria farmacêutica sempre coloca nos fármacos um tempo maior de garantia e um menor como prazo de validade, sobretudo nos não imunobiológicos”
Note-se na imagem da ampola que abaixo do lote está a data de vencimento. Os profissionais da linha de frente tem toda condição de checá-la antes de iniciar a aplicação na população.
“Temos muito a perder discutindo esse assunto, pois ele cria um ambiente negativo para a vacinação no Brasil”, diz Jesem. “É um momento também para refletirmos sobre a necessidade de profissionalização do jornalismo especializado em ciência”.
“Não é incomum encontrarmos inconsistências, visivelmente incompatíveis com a realidade, nos sistemas de informação que estão sendo usados para lançar dados sobre internação ou morte por Covid-19, bem como sobre Vacinas contra a doença”, prosseguiu Orellana. “Também não é incomum, alguns jornalistas não especializados em ciência ou na manipulação de grandes bancos de dados da área de saúde, cometerem equívocos elementares ou serem mal assessorados em suas reportagens. Este é um ponto que o jornalismo brasileiro tem muito a aprender”
Principalmente a partir das declarações do presidente Jair Bolsonaro, a vacinação no Brasil sempre esteve envolta em polêmicas. No início ele era contra a compra dos imunizantes e incentivava as pessoas ao uso da medicação precoce, enquanto seus apoiadores espalhavam fake news sobre chips líquidos nas vacinas ou o fato dela transformar as pessoas em jacarés.
As prefeituras estão cuidando de desmentir ou esclarecer que as vacinas aplicadas estavam dentro do prazo de validade.
Maringá, a cidade que lideraria o ranking dos imunizantes vencidos, divulgou nota negando:
“No começo da vacinação, a transferência de dados demorava a chegar no Ministério da Saúde, levando até dois meses. Portanto, os lotes elencados são do início da vacinação e foram aplicados antes da data do vencimento. Concluindo, não houve vacinação de doses vencidas em Maringá e sim erro no sistema do SUS”.
Da mesma forma, Belém, por meio de sua Secretaria de Saúde, refutou:
“É possível que tenha havido erros nos registros, especialmente nas primeiras etapas da campanha de vacinação em massa, quando as anotações eram feitas manualmente em fichas de papel e posteriormente digitadas”
A capital da Bahia, Salvador, também negou a utilização de vacinas vencidas:
“A aplicação das doses foi realizado dentro do período determinado pelo fabricante do imunobiológico e apenas no sistema do banco de dados do Ministério da Saúde foi efetuado em data posterior a aplicação da vacina.”
A junção de um sistema falho de dados com um jornalismo não especializado em ciência pode gerar grandes problemas. A reportagem da Folha é prova disso.