O Império de Gaza foi o segundo maior império africano liderado por um nativo e teve como último monarca Ngungunyane, ou Gungunhane, como ficou conhecido entre os portugueses.
Por ter se rebelado e ameaçado o domínio colonial português, Ngungunyane – apelidado, ainda, de “Leão de Gaza” – foi derrotado e deportado para o Açores pela coroa portuguesa em 1895, vindo a falecer em 1906. O Império de Gaza foi o que hoje conhecemos como a metade sul de Moçambique. O nome de Ngungunyane permaneceu como símbolo de glória e mito, e lendas e histórias foram criadas em cima de sua personalidade.
Com base em extensa pesquisa, o escritor moçambicano Mia Couto lançou no final de 2015 o primeiro romance histórico da trilogia As areias do Imperador, que conta os derradeiros anos do Império de Gaza, nas vozes de dois narradores, uma garota africana e um militar português degredado. O segundo e terceiro volume da trilogia têm previsão de lançamento para esse ano e 2017, respectivamente. O título vem de uma das lendas acerca do caixão com o corpo de Ngungunyane, oficialmente repatriado para Moçambique em 1985, cujo conteúdo, dizem, contém apenas areia colhida em solo português. As areias também significam um império que ruiu.
No primeiro romance, Mulheres de Cinzas, somos apresentados a Imani, garota da tribo VaChopi, uma das poucas que resistem aos avanços de Ngungunyane e permanecem fiéis a Portugal. “Na minha língua materna ‘Imani’ quer dizer ‘quem é?’. Bate-se a uma porta e, do outro lado, alguém indaga: — Imani? Pois foi essa indagação que me deram como identidade. Como se eu fosse uma sombra sem corpo, a eterna espera de uma resposta.”, diz Imani sobre a origem do seu nome.
Do outro lado, alternada à voz de Imani, temos as cartas que o sargento Germano de Melo envia a Portugal relatando sua experiência no vilarejo de Nkokolani, onde Imani lhe serve de intérprete.
A família de Imani é dividida: o seu irmão mais velho, Dubula (“disparo de arma”, em zulu), “inteligente e expedito”, se juntou às tropas de Ngungunyane para combater Portugal. Mwanatu, o irmão mais novo, “lerdo e incapaz”, fascinado pelos portugueses, serve de ajudante e mensageiro de Germano de Melo, com a promessa de um dia partir para Lisboa e entrar no exército.
Pouco a pouco, Imani e Germano de Melo se aproximam, apesar das diferenças étnicas e culturais. Imani, que se considerava uma alma de corpo vazio, começa a ser notada por Germano como mais que um corpo sem alma – pois, à época, acreditava-se, segundo a tradição cristã, que os negros e índios não possuíam alma. “Confesso começar a sentir uma atração por Imani. (…). E não é apenas um sentimento carnal. É algo mais intenso, mais total, algo que jamais havia sentido por uma mulher branca.”
Há também um mordaz quadro da condição feminina e das guerras que assolavam a África naquela época. Em um dos capítulos sobre Imani, nos deparamos com a seguinte citação: “A diferença entre a Guerra e a Paz é a seguinte: na Guerra, os pobres são os primeiros a serem mortos; na Paz, os pobres são os primeiros a morrer. Para nós, mulheres, há ainda uma outra diferença: na Guerra, passamos a ser violadas por quem não conhecemos.”
A obra mantém a escrita já conhecida de Mia Couto, sempre poética, com muitos neologismos e fatos fantásticos, como o avô de Imani, que vive por baixo da terra, escavando até onde pode, ou um militar português que, de tão podre, carrega moscas dentro de si; ou, ainda, a espingarda que traz os ecos dos gritos das pessoas que assassinou. Contudo, esse ritmo poético se mantém apenas na voz de Imani. As cartas do sargento tornam a narrativa um tanto quanto descritiva e, por vezes, enfadonha. Mas nada que atrapalhe a fluidez da história.
A leitura vale a pena tanto pelo prazer literário quanto pelo resgate histórico de Moçambique. O autor, apesar de também trabalhar como biólogo, é um escritor conhecido tanto na comunidade lusitana quanto internacionalmente, tendo cerca de duas dezenas de livros publicados, entre romances, contos e crônicas. Foi vencedor, em 2013, do prêmio Camões.
No lançamento do livro, Mia Couto declarou que é necessário conhecermos os vários lados da mesma história. “Infelizmente, acho que nós, em Moçambique (…), estamos ainda prisioneiros de uma visão única do passado e temos que nos libertar disso. Essa versão é válida também, mas é preciso que a gente pense que a história foi escrita por várias mãos e por vários vencidos. Houve vencidos do nosso lado e houve vencidos do lado de Portugal. Nesse livro eu quero trazer essas diferentes vozes”, disse.
O presidente de Moçambique, Filipe Nyusi, comentou sobre o livro: “Mais vale sermos nós a despertarmos fantasmas que fantasmas a despertarem a nós”.