Ricardo Salles e a segunda morte de Chico Mendes: desconstruir a memória do líder seringueiro interessa aos ruralistas

Atualizado em 12 de fevereiro de 2019 às 12:40
Chico Mendes

Ricardo Salles não é apenas um adversário das boas pautas dos ambientalistas; ele é um ignorante, homem de uma colossal ignorância.

Ministro do Meio Ambiente, confessou ao vivo, numa entrevista no Roda Viva da TV Cultura, que não sabe quem é Chico Mendes.

Mesmo assim, não se furtou de dar opiniões negativas sobre o líder seringueiro assassinado há mais de 30 anos, numa manifestação clássica de mau-caratismo — “não conheço, mas ouvi dizer que…”: 

“Ele usava os seringueiros para se beneficiar, fazia uma manipulação da opinião ali”, disse.

Em seguida, falou que o assunto é “irrelevante. Que diferença faz quem é o Chico Mendes neste momento?”

A jornalista Cristina Serra lembrou que Chico Mendes “é um homem reconhecido pela ONU”.

Sem dar uma resposta concreta, Ricardo Salles atacou a organização internacional: “Mas a ONU reconhece um monte de coisa errada também”.

A jornalista comentou: “Não quer dizer nada?”

Salles balbuciou algumas palavras, mas não concluiu a frase.

Pelo cargo que ocupa, a ignorância de Salles é indesculpável, e mais grave do que isso foi dar vazão a comentários de fazendeiros sobre Chico Mendes, numa reedição da canalhice de tempos atrás, como se dissessem: “Chico Mendes não é tudo isso que estão falando”.

Chico Mendes tem que ser visto pela sua obra, e ela foi enorme num momento em que a floresta amazônica estava sendo devastada, entre os anos 70 e 80.

Pela luta liderada por Chico Mendes, se entende por que Rondônia perdeu quase toda a sua área de floresta e o Acre, não, embora haja no estado acreano grandes extensões exploradas hoje pela pecuária.

O próprio Chico Mendes se apresenta, no documentário “Eu Quero Viver”, do cineasta inglês Adrian Cowel, lançado em 1987, que deu projeção internacional ao seringueiro.

Depois de mostrar imagens da mata queimando, o filme fala da luta dos seringueiros para preservar a floresta:

“Durante uma década, seu líder foi Chico Mendes, que organizou os seringueiros em sindicatos para lutar contra os que promoviam o desmatamento.

No filme, o próprio Chico Mendes se apresenta, enquanto rodam imagens dele cortando seringa.

— Eu sempre fui seringueiro, meu pai foi seringueiro. Eu comecei a cortar com 9 anos de idade. Durante 20 anos, eu cortei seringa direto. Só em 75 mais ou menos, quando entraram os fazendeiros, eu entrei no sindicato, aí eu parei mais um pouco e cortava menos.

O documentário mostra que a seringa pode ser uma maneira sustentável de gerar riqueza e preservar a natureza.

“As seringas são cortadas duas vezes por semana, numa atividade que pode durar para sempre”, diz o narrador.

O filme mostra a pequena propriedade rural de Chico Mendes, herdada do pai, e tocada por ele e o irmão.

É mantida agricultura de subsistência e são criadas algumas cabeças de gado. Na floresta, os seringueiros ganhavam dinheiro, com a extração da seringa.

O filme mostra que um dos vizinhos do Chico Mendes era a fazenda de um dos maiores frigoríficos da época, a Bordon, que tinha sede a mais de 3 000 quilômetros dali, em São Paulo, e mantinha milhares de cabeças de gado onde antes havia floresta.

Um homem muito parecido com Joesley Batista dá entrevista, como representante da Bordon, falando das exportações da carne.

Chico Mendes aparece, então, sentado em sua pequena propriedade, com uma criança no colo, e diz:

— A intenção dos fazendeiros é ficar com todas as nossas terras, mas nós não temos nenhuma intenção de entregar as terras para eles. Nossa luta é pela defesa da seringueira, da castanheira. Nossa intenção é levar essa luta até o fim, porque nós não vamos permitir que as nossas florestas sejam destruídas.

Com o documentário, Chico Mendes passou a ser mais conhecido fora do Brasil do que aqui mesmo e passou a ser alvo de intriga e inveja, sobretudo da parte dos fazendeiros ou de seus defensores.

Em 1987, ganhou o prêmio Global 500, da ONU, e a Medalha de Meio Ambiente da Better World Society, nos Estados Unidos.

Em 1988, Chico Mendes estava preocupado com a própria vida, temia que tivesse o mesmo destino de Wilson Pinheiro, antigo líder dos seringueiros, assassinado oito anos antes.

Estava tão preocupado que pediu a um jornalista, o Edílson Martins, que morava com a atriz Cássia Kiss, que tentasse viabilizar uma entrevista dele num jornal de alcance nacional.

Edílson convidou Chico Mendes para ir ao Rio e o apresentou aos editores do Jornal do Brasil, um dos mais prestigiados da época.

Saiu da redação com a perspectiva de que, domingo seguinte, a entrevista seria publicada, no Caderno Especial, editado por Zuenir Ventura. Mas a entrevista, em que ele falava da ameaça de morte, foi recusada.

O jornalista Altino Machado, seu conterrâneo no Acre, o encontrou em uma banca de jornal naquele domingo, 18 de dezembro, conforme relatou a mim, durante visita que fiz a ele em Rio Branco, no período em que fiquei lá para a série de reportagens sobre a compra de votos da reeleição.

“Naquele dia, o Chico Mendes estava triste, porque achava que a entrevista seria publicada e, para ele, era importante, já que poderia desarticular o plano dos fazendeiros de matá-lo”, contou Altino.

Quatro dias depois, Chico Mendes foi assassinado, sem saber que os editores do Jornal do Brasil, segundo Edilson Martins, haviam recusado a entrevista por entender que o seringueiro era desconhecido.

Edílson Martins relatou o episódio em um artigo escrito quando se complementaram 25 anos da morte de Chico Mendes:

No sábado, corro às bancas em busca do Caderno Especial, e vejo que a entrevista não saíra. Entro em pânico. Procuro o Zuenir e sou informado que se encontrava em Vitória, no Espírito Santo, mas que segunda-feira retornaria ao jornal. Na segunda, na redação, ele me diz que a matéria não saíra porque eu estava trazendo mais um cara que politizava demais a questão ambiental. Essa era a opinião do jornal.

– Quem?

– Os dois diretores: o Marcos Sá Correa e o Roberto Pompeu. Não tem “gancho”. Ninguém sabe quem é ele.

– Bom, o jornal vai esperar o cara ser assassinado? A morte dele está anunciada.

A morte de Chico Mendes só ganhou repercussão no Brasil a partir de textos publicados em alguns jornais importantes dos Estados Unidos e da Europa.

O Jornal do Brasil desengavetou a entrevista e fez uma cobertura intensa do caso. Publicou a entrevista como material inédito, o último depoimento de Chico Mendes, e deslocou seus principais jornalistas para fazer a cobertura no Acre.

Já era tarde, mas, enfim, o Brasil dos Ricardos Salles da época ficaram sabendo quem era Chico Mendes e qual era a sua luta.

Mesmo assim, como se vê agora pela declaração do ministro do Meio Ambiente,  há uma tentativa de arrancar uma página da história ou tentar reescrevê-la, para tirar a grandeza de Chico Mendes.

Sua grandeza é inimiga do agronegócio.

Veja a parte 1 do documentário “Eu Quero Viver”:

Veja também o declaração do ministro Ricardo Salles:

.x.x.x.x.

Leia também: Chico Mendes permanecerá na História e a Ricardo Salles está reservada a lata de lixo.