Jovens não dizem o que os avós repetem quando da morte de gente da idade desses avós. Os avós dizem: não pode, não nessa idade, não agora.
Como se os idosos que estão partindo estivessem em dessintonia, em idade e tempo, com o que deveria ser a hora da morte.
Jovens não sabem direito que Rita Lee já foi jovem. Rita morreu com 75 anos. Deveria durar 120 anos ou ser eterna. Mas durou o que é o tempo médio de vida de um idoso de classe média.
Mas nós achamos que ela foi cedo, que não era a hora e que há algo sem sentido na morte de alguém com a força de Rita Lee.
E aí vem então o que não queremos ver. Que a morte de Rita nos avisa sobre o fim da turma do nosso tempo, do tempo dos avós que eram os jovens do século 20.
Vemos o que fomos, com o verbo no passado, morrendo junto com Rita Lee. E nos negamos a admitir que é a nossa geração, essa geração ao redor dos 70 anos, que está indo embora.
Não é mais como aconteceu com Elis, que se foi com 36 anos. Nem Raul Seixas, com 44, ou Gonzaguinha com 45. Todos antes do tempo.
Muitos dos nossos ídolos, os ídolos da nossa geração, estão morrendo agora na velhice. Doentes, mas já idosos. Rita Lee era uma idosa.
É o que nos dói. Nos maltrata talvez mais do que a lembrança dos que morreram cedo, como Jim Morrison, que estaria hoje com 79 anos. E morreu com 27.
Che Guevara iria fazer aniversário agora, no dia 18 de maio. Teria 95 anos. Che Guevara hoje estaria com quase um século.
E então morre Rita Lee, no mesmo dia em que morreu o ex-deputado David Miranda, com apenas 37 anos.
Miranda é do nosso tempo de luta e resistência de democratas, negros e gays, mas não é da geração de Rita Lee, da nossa geração, dos que também resistiram e começam agora a morrer todos os dias.
A geração da segunda metade do século 20, talvez a mais revolucionária, a mais inquieta, a mais inventiva e a que mais afrontou costumes, governos, normas e leis, essa geração está indo embora.
Por isso nos abatemos com a morte de Rita Lee, mesmo sabendo que ela estava doente há muito tempo.
Porque gostaríamos que ficasse mais um pouco ao lado da gente e do rock que também está se despedindo de nós.
Nossos avós torciam para que parentes e vizinhos não fossem embora, e nós não entendíamos direito aquele apego a quem já tinha idade para morrer.
Nos damos conta agora, com a morte de Rita Lee, e depois de uma sequência de mortes, que estamos nos despedindo dos ídolos da nossa geração agora idosa.
Os jovens nos olham, diante do nosso assombro com o previsível, e se sentem como nos sentíamos diante de nossos avós lá no meio do século passado.
Envelhecemos e estamos todos prontos para a despedida de alguém, a qualquer momento, e essa é a realidade a que estamos nos acostumando.
Ainda estamos no gerúndio. Estamos nos dando conta de que Rita Lee foi embora na hora errada porque deveria ficar mais tempo por perto, para que morresse depois da gente.
Mesmo que não cantasse mais e não fizesse shows, não importa. O que desejamos mesmo, e esse é o nosso desejo sincero, é que eles se despeçam depois, para que não fiquemos sozinhos.
É o pior sentimento de perda com o fim dessa geração de figuras de exceção. A sensação de que estamos ficando desamparados da proteção das suas artes e bravuras de humanos fora de todos os padrões.
Estamos nós, os comuns, vendo os incomuns morrerem antes, o que só parece um consolo, porque continuamos aqui, mas é também um desalento.
Morreu a ovelha negra, a mais abusada, a mais negra, a mais alegre, inquieta e barulhenta, a nossa irmã boa de briga, a deusa pagã do Butantã. Deusas também morrem na velhice.
Originalmente publicado em Extra Classe
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