Roger Waters tem razão. Por Hugo Albuquerque

Atualizado em 10 de junho de 2023 às 14:43
Roger Waters se apresenta ao vivo no palco durante um show na Mercedes-Benz Arena em Berlim em 17 de maio de 2023. Foto de Frank Hoensch / Getty Images

Por Hugo Albuquerque

Roger Waters tem sempre razão. Seja quando o assunto é música ou política, Roger costuma acertar. Para ser sincero, suas intervenções políticas nos últimos anos são mais do que acertadas, elas são a pura expressão da coragem em tempos de covardia moral. E graças a isso, hoje, ele é alvo de uma investigação kafkiana e ridícula feita, irônica e coincidentemente, pela polícia alemã, que busca criminalizá-lo por uma conhecida performance que denuncia o nazismo.

A acidez de Roger é mais do que lisérgica, ela é a contundência que aponta que o Rock ainda não morreu. Quando é mais conveniente se calar sobre o embargo econômico contra a Venezuela, Roger vai lá e o denuncia. Em tempos nos quais é conveniente relativizar ou silenciar contra a segregação dos palestinos pelo Estado de Israel, Roger põe o dedo na ferida e aponta como os constantes bombardeios à Faixa de Gaza são criminosos.

Quando a realidade se torna uma sátira de si mesma

No último show de Roger Waters em Berlim, ele surgiu com um casaco cinza com detalhes em vermelho que emulava a farda de uma oficial da SS nazista, fazendo uma crítica óbvia ao fascismo. No letreiro do telão, se podiam ver o nome de vítimas de regimes autoritários: de Anne Frank, a adolescente judia morta em um campo de concentração que deixou para o mundo o seu diário; também da jornalista palestina da Al Jazeera, Shireen Abu Akleh, morta por um franco-atirador israelense, enquanto cobria uma operação de Israel contra civis palestinos no campo de refugiados de Jenin.

Tudo aquilo era, obviamente, uma crítica e uma sátira, e sequer foi a primeira vez que ele, ou o Pink Floyd, fizeram isso — a performance tinha uma conotação óbvia de crítica ao autoritarismo. O escândalo político em Berlim veio depois dos protestos do embaixador israelense na ONU, que viu “antissemitismo” na performance. Mas também há pouco tempo, outro show dele na Alemanha, dessa vez em Frankfurt, foi cancelado e precisou de uma decisão judicial para que pudesse ser realizado neste final de semana.

Foto: AFP via Getty Images

Além dos ataques do Estado de Israel contra Waters, que não são nenhuma novidade, assim como as conhecidas posições dele em defesa dos direitos humanos dos palestinos, a postura de Waters crítica ao papel da Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN), que serve de deflagradora do recente conflito ucraniano, já havia causado mal-estar no lobby ocidental — e isso transforma a mídia mainstream europeia em um verdadeiro coral, onde ninguém pode dissonar sob o risco de ser cancelado.

A Alemanha, como se sabe, está envolvida até a cabeça no esforço de guerra da OTAN contra a Rússia. Mas o suposto compromisso alemão contra o nazismo está esbarrando na realidade nua e crua: o sistema judicial e político alemão parecem pouco empenhados em reprimir a extrema direita, que já há algum tempo voltou à cena política do país na forma do Alternativa para a Alemanha (AfD, na sigla em alemão), uma legenda que apareceu junto do movimento “anti-imigração”, ocultando em seu discurso pesadas doses de xenofobia e, particularmente, islamofobia.

Alguns dos dirigentes do AfD, inclusive, são descendentes de ex-oficiais nazistas e não escondem seus vínculos com redes internacionais de extrema direita — chegando a visitar o ex-presidente brasileiro, Jair Bolsonaro. Aliás, pelo visto, as autoridades israelenses parecem mais preocupadas com Roger Waters do que com o AfD, uma vez que até mesmo Yair, o filho do eterno premiê de Israel Benjamin Netanyahu, frequentemente manifesta apoio ao partido alemão e foi, inclusive, usado como garoto-propaganda da legenda extremista.

O novo discurso da Ordem

Toda a perseguição contra Roger Waters é patética demais para merecer maiores respostas. Mas isso se trata de um case internacional, que não apenas aponta o avanço da extrema direita em escala global como, ainda, é um sintoma de uma crise profunda das esquerdas, seduzidas ou constrangidas pelo discurso liberal — que se apresenta como a única via possível às novas formas de fascismo e extremismo de direita.

Se em 2003, um movimento global se levantou para denunciar a farsa da Guerra do Iraque, o que jamais foi qualquer endosso ao ditador iraquiano Saddam Hussein, hoje os movimentos sociais parecem petrificados para denunciar qualquer tipo de coisa estrutural — e corre o risco de se confundirem com regimes, personalidades ou coisas que não apoiam, presas fáceis que se tornaram para qualquer campanha de pânico moral, sobretudo na era das redes sociais.

Essas campanhas de pânico moral em escala internacional, hoje, são muito bem-sucedidas e usadas aos montes. Grande parte delas se dão em redes sociais controladas por Big Techs norte-americanas, ou envolvidas com a extrema direita ou com os típicos liberais do Vale do Silício. Roger Waters, que estava lá também denunciando a fantástica mentira que levou à invasão iraquiana, é um bastião moral contra esse estado de torpeza global.

Vejamos o caso da Operação Lava Jato no Brasil. A esquerda brasileira ficou paralisada diante dela. Embora um pequeno e corajoso grupo de jornalistas e juristas tenham denunciado tudo à época dos fatos, havia uma imobilidade geral, pois afinal de contas ninguém queria “apoiar a corrupção” ou ser “confundido com um corrupto”.

Muitos militantes honestos só se deram conta desse erro quando o ex-juiz Sérgio Moro, que condenou Lula em 2017, foi nomeado ministro de Jair Bolsonaro ainda em 2018. Mas a ficha só caiu mesmo depois que, em 2019, o Intercept teve acesso a vazamentos nos quais procuradores que atuaram na Lava Jato, basicamente conspiravam entre si e com o então juiz para condenar Lula.

Por que eu estou falando sobre Lava Jato e Bolsonaro? Porque além disso confirmar o estado de coisas contra o qual se volta Roger Waters — lembrando que ele também estava lá defendendo Lula. Para além do verdadeiro bombardeio promovido pelas corporações de mídia tradicionais, campanhas bem orquestradas nas redes sociais e o uso partidário do judiciário, existe o acionamento de um gatilho poderoso que torna as esquerdas reféns da vergonha e do medo — justamente quando a Lava Jato, marotamente, construía uma narrativa na qual a culpa ancestral da corrupção brasileira era exclusiva à esquerda brasileira.

Usando dos mesmos lugares comuns, a OTAN sustenta sua expansão do mundo, afinal ninguém quer parecer um “apoiador de Putin” ou um “inimigo da democracia”, assim como Israel justifica seus ataques contra os palestinos, porque afinal de contas ninguém quer parecer antissemita.

Mas de repente surge um rockstar global, quase octogenário, apontando claramente a falácia dessas narrativas, e que condenar a OTAN significa simplesmente…condenar a Otan e seu expansionismo bélico — ou condenar a política de Israel contra os palestinos é perfeitamente coerente com a denúncia do Holocausto.

Roger Waters, sozinho, se torna uma espécie de significante global anti-algoritmo, um velho guru que simplesmente te autoriza a denunciar a banalização do mal livremente, sem ter que se preocupar se o seu café é descafeinado ou se você foi educado o suficiente ao gritar contra o belicismo das assim chamadas democracias liberais.

A arte e a ação política desse senhor de quase 80 anos não apenas são inspiradoras, mas nos ajudam a fugir dos lugares comuns desta era triste e cínica. Enquanto a extrema direita e os liberais coincidem em paralisar moralmente movimentos e partidos progressistas ao redor do mundo, e estes setores aceitam essa narrativa, Waters ensina que é preciso empurrar o medo e a vergonha para o lado de lá.

*Hugo Albuquerque é publisher da Jacobin Brasil, editor da Autonomia Literária, mestre em direito pela PUC-SP, advogado e diretor do Instituto Humanidade, Direitos e Democracia (IHUDD).

Publicado originalmente na revista Jacobin Brasil

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