Por André Lozano*
A imparcialidade é um dos pressupostos do direito democrático. Na formatação atual do Direito, o juiz deve se manter equidistante das partes para que as decisões que toma ao longo do processo sejam legítimas. O desenho constitucional do processo, no qual o juiz não deve pender para o lado de nenhuma das partes envolvidas, é de fácil visualização, mas o seu funcionamento nem sempre se dá de forma perfeita como tratado nos livros de Direito.
No processo penal, essa imparcialidade é mais difícil de se alcançar, pois os sentimentos e preconceitos que o julgador nutre contra o acusado – devido à empatia que naturalmente se nutre pela vítima – muitas vezes o coloca, inconscientemente, numa posição que favorece a acusação. Somado a isso, há juízes que chamam para si a função de combatentes da criminalidade, vislumbrando como sua principal função condenar aqueles que se sentam no banco dos réus.
Quando isso acontece, o processo deixa de ser um instrumento que visa assegurar a boa decisão para ser um instrumento para justificar a condenação do acusado.
Ainda que muitos juízes acreditem ser agentes de combate ao crime, não é comum que se exponham e atuem, explicitamente, em conluio com a acusação ou que deixem claro a todo momento a sua parcialidade. Não foi esse o caso de Sérgio Moro.
Moro, desde o início da Operação Lava-Jato, mostrou que seu objetivo era desmantelar uma quadrilha que pilhava o Brasil. O grande problema é que o Moro era o juiz que deveria se debruçar sobre o processo para verificar se essa quadrilha realmente existia e, constatando sua existência, verificar aquelas pessoas que realmente atuaram de forma criminosa. Mas Moro desde o começo parecia saber que pessoas faziam parte da quadrilha que ele queria condenar (mesmo que não houvesse tal quadrilha) e qual a quadrilha que desejava proteger.
Desde o início da operação Lava-Jato, a atuação de Moro foi no sentido de prejulgar alguns dos investigados e acusados, ao mesmo tempo que desejava garantir que outros não fossem alvos da operação, como ocorreu com Álvaro Dias e com o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso.
Enquanto poupava políticos alinhados com uma economia neoliberal, não poupava aqueles que eram alinhados com os governos do PT, deixando claro que o grande troféu que ele buscava, junto com os procuradores, capitaneados pelo Deltan Dallagnol, era o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva.
O simples desejo de condenar Lula e outros réus da Lava-Jato já faria com que o processo deixasse de ser legítimo devido à quebra da imparcialidade, mas sem ações que demonstrassem o desejo de perseguir e impedir Lula de se defender dificilmente haveria motivos jurídicos que justificassem anulação do processo.
No Direito, não basta alegar, é necessário provar. Felizmente, Moro acreditava que o sentimento anti-PT e anti-esquerda seriam eternos e maiores do que o respeito às instituições, à lei e à Constituição. Não faltam exemplos de momentos em que Moro demonstrou não se preocupar sequer com manter a aparência de imparcialidade para se colocar como inimigo de alguns dos réus e investigados, especialmente de Lula.
Talvez a situação mais marcante da atuação parcial, chegando a ser criminosa, tenha se dado com a divulgação das gravações telefônicas de Lula. Em decorrência do momento político em que grande parte da imprensa tradicional e considerável parcela da população repudiavam o PT, Moro divulgou as conversas telefônicas de forma criminosa sem que recebesse qualquer sanção.
Por isso, ele continuou a atuar tendo certeza da impunidade. Os tribunais, que deveriam prezar pela aplicação da lei, mantiveram-se inertes diante da força que a opinião pública havia dado à Operação Lava-Jato e seu principal expoente. Abriu-se caminho para que os processos e inquéritos da Lava-Jato não fossem mais regidos pelo Código de Processo Penal e pela Constituição Federal, mas pela vontade do juiz da República de Curitiba.
Com a prisão de Lula e seu afastamento do processo eleitoral, o primeiro objetivo do Moro foi cumprido, que era garantir que o PT e Lula não voltariam tão rápido ao poder. A extrema direita chega ao poder e com isso Moro é alçado ao cargo de ministro da Justiça. Parecia que seu plano havia se consolidado.
Ou seria levado ao STF ou seria o próximo presidente da República. Para a felicidade daqueles que prezam pela democracia e pelo respeito às leis, o jogo teve algumas reviravoltas, que vão desde o péssimo governo do qual Moro foi avalista até as escandalosas mensagens trocadas entre ele e os procuradores da Lava-Jato.
Logo que o The Intercept divulgou as primeiras mensagens relativas à Lava-Jato, ficou ainda mais claro aquilo que todos sabiam: Moro atuava como inquisidor, não como juiz. Após a apreensão das mídias pela Polícia Federal e, mais recentemente, com a liberação das mensagens pelo ministro Ricardo Lewandowski, fica evidente que Moro atuava como chefe dos procuradores para garantir a condenação de alguns investigados. Ele dizia quem deveria ser ouvido, quais e quando as provas deveriam ser pedidas, comemorava o oferecimento da denúncia.
É inaceitável que um juiz comemore o oferecimento de uma denúncia, como ocorreu quando foi informado que o MPF havia iniciado o processo contra Lula. O que se espera de um juiz que comemora o oferecimento de uma denúncia? Obviamente é a condenação, independentemente de provas, como ocorreu no caso do triplex do Guarujá. A situação é muito mais grave do que parecia num primeiro momento, pois o que as mensagens mostram é que o Moro não era apenas auxiliar da acusação, mas chefe dos procuradores, dando ordens e indicando como deveriam proceder para o sucesso da Operação Lava-Jato.
Se havia alguma dúvida da parcialidade do Moro, essa dúvida se esvaiu com a divulgação das conversas. É cada vez mais clara uma atuação promíscua entre juiz e acusação. A conduta dos procuradores e do Moro são de uma desonestidade nunca vista no Poder Judiciário brasileiro. Se o juiz deve julgar, como aceitar que ele combine as estratégias com a acusação? Para quem ainda não entendeu a gravidade, imagine que, no lugar de Dallagnol, estivesse o advogado de Lula escolhendo com o juiz a melhor forma de absolver o acusado.
Felizmente, Moro cometeu alguns erros, quase todos ligados ao excesso de confiança. Deixou diversas provas de sua atuação ilegal, deixou o governo atacando seu antigo aliado e não contou com o óbvio: o sentimento antipetista iria passar.
Agora, não faltam elementos para que o STF declare nulo o processo, pois há diversas provas produzidas nos processos da Lava Jato de que o juiz buscava prejudicar uns enquanto auxiliava outros: Moro está isolado politicamente, a opinião pública não pressionará o STF por um julgamento favorável ao ex-herói Moro. E, para seu ex-amigo e atual inimigo, Jair Bolsonaro, é interessante que Lula, PT e Lava Jato voltem aos holofotes para uma disputa política em 2022.
Com relação às mensagens indecentes trocadas entre o juiz e a acusação, há três caminhos possíveis no STF: (1) considerá-las ilícitas mas aproveitá-las como única prova capaz de absolver alguns dos réus, caso em que poderão ser utilizadas em benefício daqueles que já foram condenados por Moro; (2) considerá-las ilícitas, mas admitir que há outras provas capazes de demonstrar a parcialidade do Moro, motivo pelo qual não podem ser utilizadas no processo; e (3) considera-las ilícitas e manter as condenações por não haver provas da parcialidade do Moro. Ao que parece, o STF deve ir pelas primeiras duas opções.
Apesar de serem provas ilícitas, as mensagens já abriram os olhos de parte da população que negava a parcialidade do ex-juiz, e abundam provas de que ele possuía interesse e atuou visando a condenação de Lula.
Para sorte de Moro, as intituladas 10 medidas contra a Corrupção que Dallagnol e ele apoiavam não foram aprovadas. Se estivessem em vigor, Moro e seus comparsas do MPF poderiam ser condenados com base nas provas obtidas por meio do ataque do hacker.
Neste momento, é bom lembrar que o Processo Penal serve como freio ao poder estatal em face do cidadão, que se não for controlado tornar-se-á autoritário. Por mais que Moro, Dallagnol e companhia tenham feito de tudo para instituir um direito medieval no Brasil, nós devemos exigir que eles tenham um processo legítimo e justo, coisa que eles negaram às suas vítimas.
* André Lozano é advogado criminalista, professor de Direito Penal e Processo Penal na Universidade São Judas. Mestre em Direito pela PUC-SP e conselheiro de prerrogativas da OAB/SP.