Fala-se em ondas. Grandes ondas. Começou lá em Mariana, na região central de Minas Gerais. O tsunami de rejeitos de minério da barreira da empresa Samarco, que rompeu no dia 5 de novembro, atingiu primeiro os mineradores que trabalhavam ali. Alguns poucos conseguiram fugir para o alto e salvar suas vidas.
Para trás, os colegas gritavam enquanto eram arrastados pela força das ondas gigantes. Quem conta essa história é a mulher de um minerador que desapareceu no mar de dejetos. Todos estão muito abalados e por isso não querem falar com ninguém, ela me diz. Ficaram com as mãos machucadas e estavam em hospitais.
O primeiro povoado a ser atingido foi Bento Rodrigues, com população de aproximadamente 600 almas, e que estava tão perto do perigo. O distrito sumiu do mapa. Restaram apenas ruínas. A empresa não contava sequer com uma sirene de alarme para avisar no caso de desastre. A especulação imobiliária rolava solta há muitos anos em Bento. A empresa queria aquele local. Diz-se que era para construir outra barragem. A Samarco estava avisada desde 2013 do perigo.
A maioria dos moradores de Bento conseguiu se salvar. Avisados por telefone, saíram como estavam, não deu tempo de pegar documento, nem algum dinheiro guardado em casa. As crianças estavam na escola e correram. Conta-se de um “herói”, que saiu colocando muitas pessoas dentro de um caminhão. Se não fosse ele, a tragédia poderia ter sido bem maior para aquele povo. A imagem da menina de 5 anos que foi arrastada pela lama não me sai da memória: cabelos encaracolados, sorriso e olhinhos brilhantes. O avô da criança, encontrada dias depois da tragédia, carregava uma foto dela em Mariana para mostrar à imprensa. Ele reconheceu a neta pelos dentes e dedinhos das mãos.
Eu percorri as cidades mineiras desde Mariana até a divisa com o Espírito Santo e vi um cenário de destruição que nunca mais esquecerei na vida.
Depois de arrasar com Bento Rodrigues, a lama seguiu seu curso. Num ponto, encontrou o Rio Gualaxo, que nasce na Serra do Espinhaço. Pude ir a vários locais devastados e o que vi foram cenas de guerra. No distrito de Camargos, a Estrada Real foi interrompida. Depois da tragédia, os moradores indagavam, pensativos, sobre o futuro do lugar, muito frequentado por ciclistas e turistas que curtem a paisagem de mata Atlântica, rios e cachoeiras.
Moradores me contaram que ouviram um estrondo forte por volta das 4 da tarde, horário de rompimento das barragens. Acharam estranho pois estavam acostumados com o barulho vindo da mineração, que fica muito próxima dali, porém sempre por volta de uma da tarde. Logo chegaria a eles o desastre.
Em Paracatu de Baixo, um agricultor me falou que a lama havia acabado com várias mudas para reflorestamento que ele havia plantado na beira do rio Gualaxo. Seu José não quis deixar a cidade para se hospedar em um hotel pago pela empresa em Mariana.
“Como vou deixar minha casa aqui? E minha criação?”, ele me perguntava, emocionado. Um helicóptero pousou ali para avisar do lamaçal que se aproximava. A maioria das pessoas perdeu as casas e tudo que tinham, mas pelo menos as vidas haviam sido poupadas. Isso era o que mais importava.
O tsunami tóxico alcançaria ainda os distritos de Pedras, Barreto, Gesteira, Bicas, Ponte do Gama, até chegar ao município seguinte: Barra Longa, a 60 quilômetros de Mariana. “A empresa tinha dito que a lama não chegaria aqui, mas chegou, e pela madrugada, não deu tempo de retirar nada, deu pra salvar a vida”, me contou uma senhora que pelo terceiro dia limpava a casa. “Faz três dias que eu não durmo. Estou preocupada e com medo”.
A onda de rejeitos da Samarco ainda percorreria centenas de quilômetros por Minas Gerais, até chegar ao Espírito Santo. Ainda vai desaguar no mar. Paramos entre os municípios de Santa Cruz do Escalvado e Rio Doce, onde está a Usina Hidrelétrica Risoleta Neves, avó de Aécio. Ali os habitantes viram seu parque virar um amontoado marrom, com peixes boiando, lixo acumulado, muitos troncos de árvore caídos e um cheiro horrível de podridão, saído dos metais na água e dos bichos mortos.
Chegando a Governador Valadares, com quase 300 mil habitantes e que depende exclusivamente do rio Doce para abastecer sua população, pudemos ver uma verdadeira caça à água potável. A captação teve de ser interrompida três dias depois do rompimento das barragens. Alguns tiravam água do esgoto.
Os ricos mudaram a rotina e passaram a comer em pratos descartáveis e ficar uns dias sem lavar roupa para economizar. A prefeitura abasteceu a população com caminhões pipa e realizou a distribuição, em horário definido e quantidade limitada, de água mineral. A fila nesses lugares era de impressionar. A água sempre acabava antes do horário previsto.
Em Resplendor, os índios faziam o velório do “Atua” , como eles chamam o Rio Doce, avô e ancestral deles. O rio servia para caçar, pescar, fazer orações, cantar, colher ervas. Dona Djanira, a índia velha da aldeia, segura uma dessas ervas, com olhar meio perdido, bobo, me diz que está triste e pergunta-me como vai fazer para preparar chás para seu povo, que curam tantas enfermidades. Quando digo que venho de Mariana, ela muda o olhar, fica esperta, e me pede que lhe conte a ela o que houve lá.
Nossa expedição terminou em Aimorés, última cidade de Minas Gerais na divisa com o Espírito Santo, e a quase 400 quilômetros de Mariana. A lama avançava devagar e pudemos vê-la se misturando à água verde do Rio Doce no fim da tarde de um domingo. Um outra barragem sustenta o Consórcio da Hidrelétrica de Aimorés.
A água, que já era pouca para o gado, logo já não serviria para nada.
Pescador não se viu nenhum. Não existe mais nenhuma vida aquática. Ele está morto, com a cor forte do marrom, um coquetel de elementos químicos como ferro, arsênio, manganês, níquel.
Não se sabe quando o rio viverá novamente, assim como não se sabe da reconstrução de Bento Rodrigues, exigida pelos moradores e que será cobrada pelo Ministério Público. Não se sabe também do futuro dos krenak.
Onde dias depois da tragédia, a Samarco afirma que não houve dois rompimentos, e sim apenas um. Ainda há uma terceira barragem, a de Germano, a maior de todas, e que corre o risco de ruptura.
As cidades arrasadas pela mineradora estão em situação de emergência. Calamidade que poderia ser evitada — e eu não teria as imagens da devastação de Minas Gerais me assombrando dia e noite.