Publicado originalmente no Terra sem Males:
Após 23 anos do assassinato do camponês Sebastião Camargo, o ex-presidente da União Democrática Ruralista (UDR) do Paraná Marcos Prochet foi julgado e novamente considerado culpado pelo crime, na tarde desta quinta-feira (24), em Curitiba. O júri popular reconheceu Prochet como autor do disparo que vitimou o trabalhador rural em 1998 e condenou o ruralista a 14 anos e três meses de prisão. O ruralista poderá recorrer em liberdade.
A condenação é a terceira feita por júri popular contra Prochet. Outros júris de mesmo julgamento ocorreram em 2013 e 2016. No entanto, as duas condenações foram anuladas pelo Tribunal de Justiça do Paraná. Com mais de 23 anos do assassinato do trabalhador, o processo é marcado pela lentidão do sistema de justiça, recorrentes adiamentos do julgamento e violação da decisão soberana do júri popular. A decisão desta quinta-feira é celebrada.
Ceres Hadich, integrante da direção nacional do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), destaca que apesar do sentimento de morosidade e de revolta em relação a todo esse tempo com impunidade, é um dia em que a Justiça prevaleceu.
“Nos traz algum conforto, porque a gente percebe que, passe o tempo que passar, passem os recursos que passaram, as decisões tomadas pelo povo em júri popular sempre vem no sentido de trazer justiça, ainda que tardia. Isso não nos traz o Sebastião de volta, isso não nos tira a marca de tanta violência pelo qual a gente passou nos anos 90, mas traz muita fortaleza de saber que a história é justa e traz a verdade à tona”, afirmou a dirigente, minutos após o anúncio da sentença.
Sebastião Camargo foi morto aos 65 anos, com um tiro na cabeça. O crime ocorreu no dia 7 de fevereiro de 1998, durante um despejo ilegal em um acampamento do Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST) na Fazenda Boa Sorte, em Marilena, cidade no Noroeste do Paraná. Na área residiam 300 famílias. Além do assassinato de Camargo, 17 pessoas, inclusive crianças, ficaram feridas na ocasião.
O agricultor deixou esposa e cinco filhos, entre eles Messias Camargo, que se emociona ao comentar a decisão: “Pra mim é uma satisfação. Ele [Prochet] tem que pagar pelo que ele fez pro meu pai. A gente sofreu muito com isso. Sentimos muita saudade”, relata Messias, que era criança na época. “A gente agradece ao MST e às entidades que lutam pela gente. E agradece a todos que acompanham essa luta, porque todo mundo sofre com isso. É uma luta de todo mundo”, afirmou.
Darci Frigo, vice-presidente do Conselho Nacional de Direitos Humanos (CNDH), acompanhou presencialmente o júri. “Só houve, até agora, a punição de executores e de alguns intermediários, mas nunca se chega realmente aos chefes dessas organizações […]. O resultado veio muito tarde, essa é a terceira tentativa. Ele só aconteceu porque houve um esforço sobre-humano de organizações que atuaram no caso”. Na avaliação do advogado e defensor de direitos humanos, apesar de tardia, a sentença reafirma que crimes como estes não podem mais ocorrer. “Essa decisão é importante para sinalizar que os latifundiários também devem responder pelos seus atos e seus crimes, para que não haja efeito de repetição da violência”, complementa.
Durante o julgamento a promotora de Justiça do Ministério Público do Paraná, Ticiane Louise Santana Pereira, destacou como o caso se apresenta como singular na justiça brasileira: por ter tido dois juris populares anulados, pela duração de 23 anos do processo e pela responsabilização do Estado brasileiro pelo assassinato do trabalhador pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) responsabilizou o Estado brasileiro em 2009, em razão da lentidão e não responsabilização dos envolvidos pelo sistema de justiça brasileiro. O júri foi presidido pelo juiz Daniel Ribeiro Surdi de Avelar.
“Não me falaram, eu vi”
A camponesa Antônia França é a principal testemunha de que Prochet assassinou Sebastião Camargo. Ela estava deitada ao lado de Sebastião quando ele foi executado. Ao relatar durante o júri, a trabalhadora resgatou como foi o fatídico dia. “Chegou um caminhão cheio de jagunço, tudo armado, foram pegando as pessoas, nos barraquinhos e foram levando para o portão. Onde a gente olhava tinha gente encapuzada, de preto, tinha bastante gente, um caminhão cheio”, relembrou a camponesa, na época com 28 anos, sobre a chegada da milícia na fazenda. Antônia participou do júri de modo remoto, e já havia participado dos dois anteriores de forma presencial.
De acordo com a testemunha, não houve resistência à ação da milícia por parte das famílias acampadas. “Ninguém atirou, a gente estava tudo desarmado. Seu Sebastião não andava armado”. Assim como outros trabalhadores do acampamento, Antonia foi obrigada a deitar no chão de barriga para baixo. “Eu estava do lado do Sebastião, deitada. Quando saiu o tiro, aí que eu olhei para cima. O tiro foi pertinho dele, estava uns dois, três metros”, relatou. Após o disparo, a camponesa foi atingida por pólvora e vestígios do ferimento que matou Sebastião Camargo. Os vestígios de pólvora no corpo da camponesa foram atestados em perícia.
Como os jagunços estavam encapuzados, dona Antônia confirma ter reconhecido Marcos Prochet primeiro pela voz, e depois ao tiro que vitimou o agricultor, ela viu o rosto dele – já que ele levantou o capuz. “Eu conhecia ele. Eu estava na frente dele, ele estava na frente com outros, ele estava armado […]. Na hora que ele atirou, ele tirou o capuz. Não sei porque ele fez isso, talvez pela fumaça. Era uma arma grossa, grande”, relatou a agricultora em juízo. Ela contou que conheceu o líder da UDR meses antes, quando estavam acampados na fazendo Dois Córregos, de propriedade do ruralista. “Ele ia lá quando a gente ocupava, ia com a polícia para tirar a gente de lá”, explicou.
Questionada do porquê Sebastião Camargo foi atingido, a testemunha lembra do problema das costas que o impedia de ficar por muito tempo na posição ordenada pelos jagunços. Para evitar que o trabalhador reconhecesse os autores da ação, o camponês foi assassinado. “Mandaram ele abaixar e ele não abaixou, e já atiraram nele”. Antônia foi enfática durante as tentativas da defesa de colocar em cheque o depoimento: “Não me falaram, eu vi”, garantiu.
Seis pessoas viram Marcos Prochet no momento da desocupação – quatro delas viram o momento em que Sebastião Camargo foi morto, e reconhecem o ruralista como autor do disparo.
Fragilidade dos álibis e argumentos da defesa
Os principais álibis apresentados por Prochet eram seus próprios funcionários. Ao longo dos 23 anos de processo, a defesa apresentou dois roteiros diferentes dos possíveis trajetos que Prochet teria feito em Londrina, na manhã do crime. As contradições presentes nas duas versões somam para a afirmação de que ele participou dos despejos em Marilena. “Os álibis não se sustentam, pessoas se contradizem ao longo de 23 anos. Dona Antônia se mantém”, enfatizou a promotora durante o júri.
Diferente da narrativa usada pela defesa de que Prochet sempre agiu dentro da legalidade, a acusação apresentou durante o júri trechos de entrevistas concedidas pelo ruralista a veículos de comunicação. Um ano após o crime, Prochet disse à uma reportagem do jornal Estado do Paraná que “o único recurso que temos é a lei da selva e os fazendeiros estão se armando. Ao contrário da solução dessa pacífica, os fazendeiros precisam se unir e se organizar para defender suas terras, quase todos eles têm armas para defender suas armas. Não gostaríamos de atirar nos sem terra, só que se os ânimos vão se exaltando e como não existe policia e nem respeito a lei, de repente pode ter um conflito”, declarou à época.
A promotoria ainda destacou entrevistas concedidas por Prochet à Folha de São Paulo com o título “Cresce tensão entre fazendeiros e sem-terra”, em que Prochet manifestou que: “Em caso de confronto com sem-terra, os representantes assumiram a responsabilidade em bloco”.
Prochet acompanhou pessoalmente o julgamento em que Jair Firmino Borracha foi condenado por matar o sem-terra Eduardo Anghinoni, em outro crime. Após a sentença que condenou o jagunço a 15 anos de prisão, o ruralista afirmou: “Borracha é trabalhador, não fez esse negocio”, em defesa do pistoleiro.
Advogados da UDR defendem jagunços
Em 8 de fevereiro daquele ano, dia seguinte ao crime, o delegado de polícia que acompanhava o caso recebeu uma denúncia anônima de que pistoleiros estariam acampados na fazenda Figueira. A área estava localizada em Guairaçá, nas proximidades das outras duas fazendas onde haviam sido feitos despejos.
Lá, fez prisões em flagrante e apreensão de armas de grosso calibre como rifle semi-automático, pistolas, rádios de comunicação, máscaras balaclava, soco-inglês. Dois advogados foram até o local e se colocaram na defesa dos pistoleiros, Ricardo Baggio e José Ortiz. Os dois também aparecem em processos ligados a Prochet à UDR. A partir deste dia, o delegado afirma que “o estado pressionou para parar de investigar”. A fazenda Figueira era do proprietário Marcelo Aguiar, ligado ao banco Bradesco.
A promotora do MP resgatou durante o jurí reportagem da época em que o Osnir Sanches, dono da empresa de segurança, disse ser amigo do presidente da UDR, Prochet, e do advogado. “Mas isso não significa que agenciei ou transportei pistoleiros. A entrada da fazenda Figueira foi interrompida ontem pelo encarregado do setor agropecuário Benedito Batista. O assessor de imprensa da UDR disse ontem que a entidade irá processar o delegado por calúnia”, dizia o trecho da reportagem. Questionado sobre ter sido processado, Eduardo Barbosa resumiu: “Não fui processado, fui retirado”.
O ofício solicitando a transferência do delegado partiu do deputado Accorsi, primo de Hugo Accorsi, vice-prefeito de Nova Londrina, que mantinha relação próxima e elogiosa à UDR, conforme em ata da própria entidade.
Após uma visita à ocupação na fazenda Boa Sorte, em novembro de 20 de novembro de 1997, para averiguar a realidade da área, o delegado relembra: “Eu vi que eram pessoas que queriam terra, que queriam ser assentadas, não armamento. […] Aquelas famílias que eu vi lá queriam terra e não estavam armados, famílias com maridos, mulheres e filhos”, trecho resgatado pela promotoria durante o júri.
A área ocupada pelas famílias já estava em processo de destinação para reforma agrária. Vistoriada pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), a fazenda foi considerada improdutiva, por isso estava em processo de desapropriação e indenização do proprietário. Teissin Tina, dono da Fazenda, recebeu cerca R$ 1 milhão e 300 mil reais pela propriedade, área onde hoje está localizado o assentamento Sebastião Camargo, em homenagem ao trabalhador assassinado.
Condenações tardias
O ex-presidente da UDR – associação de proprietários rurais voltada à “defesa do direito de propriedade” – é a quarta pessoa a ir a júri popular pelo assassinato de Sebastião Camargo. Teissin Tina recebeu condenação de seis anos de prisão por homicídio simples, no entanto não foi preso porque a pena prescreveu. Já Osnir Sanches foi condenado a 13 anos de prisão por homicídio qualificado e constituição de empresa de segurança privada, utilizada para recrutar jagunços e executar despejos ilegais. Ele cumpre prisão domiciliar, por questões de saúde. Augusto Barbosa da Costa, integrante da milícia privada, também foi condenado, mas recorreu da decisão.
Denunciado apenas em 2013, o ruralista Tarcísio Barbosa de Souza, presidente da Comissão Fundiária da Federação de Agricultura do Estado do Paraná – FAEP, ligada à Confederação Nacional da Agricultura (CNA), também foi apontado como envolvido no crime, mas a decisão judicial que determinava o julgamento de Tarcísio por júri popular foi anulada em 2019.
Histórico de violência no governo Lerner
No período em que o Paraná foi governado por Jaime Lerner, o estado registrou, além dos 16 assassinatos de Sem Terra, 516 prisões arbitrárias, 31 tentativas de homicídio, 49 ameaças de morte, 325 feridos em 134 ações de despejo e 7 casos de tortura, segundo dados da Comissão Pastoral da Terra (CPT).
Uma característica em comum nestes casos é a demora injustificada e falta de isenção nas investigações e processos judiciais. Exemplo disso, o Inquérito Policial que investigou o assassinato de Camargo demorou mais de dois anos para ser concluído e o primeiro júri no caso foi realizado 14 anos depois do crime.
Em apenas dois dos 16 casos houve condenação: em 2011, Jair Firmino Borracha foi condenado pelo assassinato de Eduardo Anghinoni; em 2012, 2013 e 2014, respectivamente, Teissin Tina, Osnir Sanches, Marcos Prochet e Augusto Barbosa foram condenados pela morte de Sebastião Camargo. Até o momento, porém, nenhum deles foi preso.