A Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) do Senado vota na manhã desta quarta-feira (27) o Projeto de Lei (PL) 2903/2023, que estabelece o marco temporal das terras indígenas. Na tarde do mesmo dia, o Supremo Tribunal Federal (STF) analisa pontos que ficaram de fora da análise da tese jurídica, como a indenização a fazendeiros.
Por meio do PL 2903, senadores ruralistas propõem não apenas implementar o marco temporal derrubado pelo STF, mas também legitimar invasões de terras indígenas ao disponibilizá-las, sem consulta prévia aos moradores, ao agronegócio e a grandes empreendimentos, como hidrelétricas, mineração, rodovias e ferrovias.
Entre os retrocessos mais explícitos nos direitos indígenas previstos pelo PL 2903 , está o trecho que diz que “não haverá qualquer limitação de uso e gozo aos não indígenas” que ocuparem territórios indígenas “antes de concluído o processo demarcatório”.
Quem avançar sobre terras indígenas terá “garantida sua permanência na área objeto de demarcação”. O texto considera todas as construções erguidas na área a ser demarcada como “de boa fé” e, portanto, passíveis de indenização.
“Salada de frutas” de retrocessos
Lideranças indígenas ouvidas pelo Brasil de Fato afirmam que a bancada ruralista afronta o STF ao defender o marco temporal, que teve sua inconstitucionalidade reconhecida pela Corte.
Indígenas preveem que o projeto seja aprovado no Senado, em função do apoio massivo que ele recebeu do agronegócio. Após passar pela CCJ, a matéria vai à votação no plenário da Casa, antes de seguir para sanção presidencial.
“Eu vejo o PL 2903 como uma salada de frutas. Pegaram todas as matérias que colocam em risco as vidas dos povos indígenas e colocaram para tramitar sem discussão. Esperamos que o presidente Lula não sancione”, afirmou Eliane Xunakalo, presidenta da Federação dos Povos e Organizações Indígenas do Mato Grosso (FEPOIMT).
Por eliminar a necessidade de consulta prévia aos povos originários, a FEPOIMT teme que o PL 2903 viabilize, a toque de caixa, a construção da Ferrogrão, um corredor ferroviário que fará o transporte de milho e soja entre Sinop (MT) e Itaituba (PA), com o objetivo de potencializar a exportação de commodities agrícolas. A falta de consentimento dos povos originários é uma das irregularidades que levou o Supremo a suspender a construção.
Apensados do PL 2903 reúnem retrocessos
O PL 2903 é a numeração no Senado do PL 490, aprovado pela Câmara em maio deste ano. Enquanto o texto base prevê a aplicação do marco temporal das terras indígenas, há mais de 10 projetos de lei apensados, ou seja, anexados à matéria original, que instituem retrocessos ainda mais graves do que a tese jurídica declarada inconstitucional pelo STF.
Entre as maiores preocupações do Conselho Indígena de Roraima (CIR) com os apensados, está a proposta de expropriar territórios dos indígenas “em razão da alteração dos traços culturais da comunidade ou por outros fatores ocasionados pelo decurso do tempo” e a proibição de ampliar terras indígenas. O estado tem 23 terras com pedidos de ampliação e outras quatro em processo de demarcação.
“O PL 2903 fere o direito dos povos indígenas à consulta livre, prévia e informada, prevista na Organização Internacional do Trabalho (OIT) e confirmada pelo Brasil. Matamos a cobra quando o marco temporal foi derrubado no STF, mas agora precisamos matar os filhos dessa cobra”, afirmou o coordenador geral do CIR, em referência à tramitação da tese jurídica no Congresso.
Edinho lembrou que o PL impediria o reconhecimento oficial das comunidades do São Francisco e Kaxirimã, que ficaram de fora da demarcação da Terra Indígena Raposa Serra do Sol, e das comunidades Lago da Praia, na região Murupu, e Arapuá, na região Taiano, cuja demarcação “em ilhas” causam disputas por terra e acesso a recursos naturais.
Em Roraima, a aprovação travaria também a ampliação das terras Araçá, Ponta da Serra, Aningal, Anaro e Serra da Moça, que tiveram territórios excluídos no processo de demarcação original.
Ruralistas enfrentam STF
A bancada ruralista, a maior do Congresso Nacional, subiu o tom contra o STF após a Corte invalidar o marco temporal das terras indígenas e tem pressa para aprovar a tese jurídica inconstitucional.
Em entrevista coletiva na última semana, o líder da Frente Parlamentar Agrícola (FPA), deputado Pedro Lupion, afirmou que “não é mais possível aceitar a expansão das atribuições do Judiciário” e que o STF instituiu a “barbárie” no campo.
José Medeiros (PL-MT), senador bolsonarista e representante dos latifundiários, declarou que o Legislativo “vai reagir”. Ele prometeu que a bancada ruralista, a maior do Congresso, decidiu paralisar votações até que o marco temporal seja aprovado na Casa.
Em outra frente de atuação para emplacar o marco temporal, o senador Dr. Hiran (PP-RR) protocolou nesta sexta-feira (22) uma proposta de emenda à Constituição (PEC) que pede a instituição do marco temporal para a demarcação de terras indígenas.
O texto considera o dia da promulgação da Constituição – 5 de outubro de 1988 – como baliza para a garantia do direito à terra: apenas povos que estivessem no território naquele momento teriam direito à demarcação.
AGU diz que PL 2903 é inconstitucional
A ministra dos Povos Indígenas, Sonia Guajajara, e do Meio Ambiente, Marina Silva, se reuniram com o presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD-MG), para buscar apoio do presidente da Casa contra os projetos de lei apensados. Um parecer da Advocacia-Geral da União (AGU) em resposta à pasta dos Povos Indígenas apontou inconstitucionalidades sobre o PL 2903.
“Dada a firmeza com que deliberou o Constituinte conduzir a questão relativa à demarcação das terras indígenas, deve-se ter em mente que qualquer proposta legislativa atinente ao ponto deve se pautar pela mesma busca de celeridade e eficiência determinadas pela Carta Cidadã. A proposta legislativa em exame [PL 2903], todavia, estabeleceu condições dissonantes do texto constitucional sobre processo demarcatório, seguindo em direção oposta a tais comandos”, escreveu a AGU.
Quem tem a última palavra, STF ou Congresso?
Mas quem tem legitimidade para definir a aplicação do marco temporal: Congresso ou STF? O Brasil de Fato já consultou especialistas na área jurídica para esclarecer a questão.
“Embora existam vários atores buscando regulamentar o tema, a prerrogativa de interpretação da Constituição Federal é do Supremo, assim como a modulação de seus entendimentos”, disse Nicolas Nascimento, advogado e assessor jurídico do Conselho Indigenista Missionário (Cimi).
“O Judiciário tem legitimidade para derrubar uma lei que contrarie o direito, como no caso do marco temporal, sem que isso signifique desarmonia entre os poderes da República”, concordou o advogado, mestre em antropologia e doutorando na Universidade Federal do Amazonas (UFAM), Felipe Jucá.
“O mesmo assunto discutido em diferentes poderes causa a tensão que estamos observando. E caso o Legislativo finalmente aprove o marco temporal, nada impede que essa nova lei também seja judicializada”, explicou Jucá, que também é pesquisador ligado ao projeto Nova Cartografia Social na Amazônia.