Ruralistas desafiam STF e votam marco temporal ‘turbinado’ no Senado

Atualizado em 27 de setembro de 2023 às 12:34
Indígenas protestam contra o Marco Temporal. Foto: Reprodução

A Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) do Senado vota na manhã desta quarta-feira (27) o Projeto de Lei (PL) 2903/2023, que estabelece o marco temporal das terras indígenas. Na tarde do mesmo dia, o Supremo Tribunal Federal (STF) analisa pontos que ficaram de fora da análise da tese jurídica, como a indenização a fazendeiros.

Por meio do PL 2903, senadores ruralistas propõem não apenas implementar o marco temporal derrubado pelo STF, mas também legitimar invasões de terras indígenas ao disponibilizá-las, sem consulta prévia aos moradores, ao agronegócio e a grandes empreendimentos, como hidrelétricas, mineração, rodovias e ferrovias.

Entre os retrocessos mais explícitos nos direitos indígenas previstos pelo PL 2903 , está o trecho que diz que “não haverá qualquer limitação de uso e gozo aos não indígenas” que ocuparem territórios indígenas “antes de concluído o processo demarcatório”.

Quem avançar sobre terras indígenas terá “garantida sua permanência na área objeto de demarcação”. O texto considera todas as construções erguidas na área a ser demarcada como “de boa fé” e, portanto, passíveis de indenização.

“Salada de frutas” de retrocessos

Lideranças indígenas ouvidas pelo Brasil de Fato afirmam que a bancada ruralista afronta o STF ao defender o marco temporal, que teve sua inconstitucionalidade reconhecida pela Corte.

Indígenas preveem que o projeto seja aprovado no Senado, em função do apoio massivo que ele recebeu do agronegócio. Após passar pela CCJ, a matéria vai à votação no plenário da Casa, antes de seguir para sanção presidencial.

“Eu vejo o PL 2903 como uma salada de frutas. Pegaram todas as matérias que colocam em risco as vidas dos povos indígenas e colocaram para tramitar sem discussão. Esperamos que o presidente Lula não sancione”, afirmou Eliane Xunakalo, presidenta da Federação dos Povos e Organizações Indígenas do Mato Grosso (FEPOIMT).

Por eliminar a necessidade de consulta prévia aos povos originários, a FEPOIMT teme que o PL 2903 viabilize, a toque de caixa, a construção da Ferrogrão, um corredor ferroviário que fará o transporte de milho e soja entre Sinop (MT) e Itaituba (PA), com o objetivo de potencializar a exportação de commodities agrícolas. A falta de consentimento dos povos originários é uma das irregularidades que levou o Supremo a suspender a construção.

Apensados do PL 2903 reúnem retrocessos

O PL 2903 é a numeração no Senado do PL 490, aprovado pela Câmara em maio deste ano. Enquanto o texto base prevê a aplicação do marco temporal das terras indígenas, há mais de 10 projetos de lei apensados, ou seja, anexados à matéria original, que instituem retrocessos ainda mais graves do que a tese jurídica declarada inconstitucional pelo STF.

Entre as maiores preocupações do Conselho Indígena de Roraima (CIR) com os apensados, está a proposta de expropriar territórios dos indígenas “em razão da alteração dos traços culturais da comunidade ou por outros fatores ocasionados pelo decurso do tempo” e a proibição de ampliar terras indígenas. O estado tem 23 terras com pedidos de ampliação e outras quatro em processo de demarcação.

“O PL 2903 fere o direito dos povos indígenas à consulta livre, prévia e informada, prevista na Organização Internacional do Trabalho (OIT) e confirmada pelo Brasil. Matamos a cobra quando o marco temporal foi derrubado no STF, mas agora precisamos matar os filhos dessa cobra”, afirmou o coordenador geral do CIR, em referência à tramitação da tese jurídica no Congresso.

Edinho lembrou que o PL impediria o reconhecimento oficial das comunidades do São Francisco e Kaxirimã, que ficaram de fora da demarcação da Terra Indígena Raposa Serra do Sol, e das comunidades Lago da Praia, na região Murupu, e Arapuá, na região Taiano, cuja demarcação “em ilhas” causam disputas por terra e acesso a recursos naturais.

Em Roraima, a aprovação travaria também a ampliação das terras Araçá, Ponta da Serra, Aningal, Anaro e Serra da Moça, que tiveram territórios excluídos no processo de demarcação original.

Ruralistas enfrentam STF

A bancada ruralista, a maior do Congresso Nacional, subiu o tom contra o STF após a Corte invalidar o marco temporal das terras indígenas e tem pressa para aprovar a tese jurídica inconstitucional.

Em entrevista coletiva na última semana, o líder da Frente Parlamentar Agrícola (FPA), deputado Pedro Lupion, afirmou que “não é mais possível aceitar a expansão das atribuições do Judiciário” e que o STF instituiu a “barbárie” no campo.

José Medeiros (PL-MT), senador bolsonarista e representante dos latifundiários, declarou que o Legislativo “vai reagir”. Ele prometeu que a bancada ruralista, a maior do Congresso, decidiu paralisar votações até que o marco temporal seja aprovado na Casa.

Em outra frente de atuação para emplacar o marco temporal, o senador Dr. Hiran (PP-RR) protocolou nesta sexta-feira (22) uma proposta de emenda à Constituição (PEC) que pede a instituição do marco temporal para a demarcação de terras indígenas.

O texto considera o dia da promulgação da Constituição – 5 de outubro de 1988 – como baliza para a garantia do direito à terra: apenas povos que estivessem no território naquele momento teriam direito à demarcação.

AGU diz que PL 2903 é inconstitucional

A ministra dos Povos Indígenas, Sonia Guajajara, e do Meio Ambiente, Marina Silva, se reuniram com o presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD-MG), para buscar apoio do presidente da Casa contra os projetos de lei apensados. Um parecer da Advocacia-Geral da União (AGU) em resposta à pasta dos Povos Indígenas apontou inconstitucionalidades sobre o PL 2903.

“Dada a firmeza com que deliberou o Constituinte conduzir a questão relativa à demarcação das terras indígenas, deve-se ter em mente que qualquer proposta legislativa atinente ao ponto deve se pautar pela mesma busca de celeridade e eficiência determinadas pela Carta Cidadã. A proposta legislativa em exame [PL 2903], todavia, estabeleceu condições dissonantes do texto constitucional sobre processo demarcatório, seguindo em direção oposta a tais comandos”, escreveu a AGU.

Quem tem a última palavra, STF ou Congresso?

Mas quem tem legitimidade para definir a aplicação do marco temporal: Congresso ou STF? O Brasil de Fato já consultou especialistas na área jurídica para esclarecer a questão.

“Embora existam vários atores buscando regulamentar o tema, a prerrogativa de interpretação da Constituição Federal é do Supremo, assim como a modulação de seus entendimentos”, disse Nicolas Nascimento, advogado e assessor jurídico do Conselho Indigenista Missionário (Cimi).

“O Judiciário tem legitimidade para derrubar uma lei que contrarie o direito, como no caso do marco temporal, sem que isso signifique desarmonia entre os poderes da República”, concordou o advogado, mestre em antropologia e doutorando na Universidade Federal do Amazonas (UFAM), Felipe Jucá.

“O mesmo assunto discutido em diferentes poderes causa a tensão que estamos observando. E caso o Legislativo finalmente aprove o marco temporal, nada impede que essa nova lei também seja judicializada”, explicou Jucá, que também é pesquisador ligado ao projeto Nova Cartografia Social na Amazônia.

Publicado originalmente no Brasil de Fato

Participe de nosso grupo no WhatsApp, clique neste link

Entre em nosso canal no Telegram, clique neste link