A fixação dos procuradores da finada “lava jato” com o ministro Gilmar Mendes, decano do Supremo Tribunal Federal, foi desde tentativas de impulsionar, às escuras, seu impeachment — ou o afastamento de processos — até o monitoramento de falas em palestras.
É o que mostram diálogos aos quais a revista eletrônica Consultor Jurídico teve acesso. A compulsão durou todo o período em que há mensagens hackeadas e envolve o uso de associações para soltar notas defendendo a “lava jato” contra falas de Gilmar; a elaboração de comunicados assinados pela assessoria do Ministério Público Federal; e a passagem de lista para processar o ministro por declarações dadas no Plenário do Supremo.
Uma fala de uma procuradora identificada apenas como “Monique” exemplifica a obsessão: “Já está cada vez mais claro que a batalha da Lava Jato passa pela batalha contra GM”, disse ela em 26 de maio de 2017 — os diálogos são reproduzidos nesta reportagem em sua grafia original.
‘Precisamos acompanhar e responder tudo’
Na descrição dos procuradores, Gilmar era onipresente, onisciente e onipotente: para eles, tudo o que acontecia em Brasília e fosse visto como ameaça à “lava jato” tinha o dedo do ministro. Até o silêncio de Gilmar era monitorado, às vezes com apreensão.
“Estou muito desconfiado desse silêncio. Acho que isso indica uma articulação”, disse em 23 de maio de 2017 um procurador identificado como “Danilo” no chat “Winter is Coming”. “Com certeza está aprontando na surdina”, disse “Janice”. “Não há dúvida que está aprontando. Algo no STF”, responde “Luiza”.
Naquele dia, a Polícia Federal prendeu os ex-governadores do Distrito Federal José Roberto Arruda e Agnelo Queiroz. As acusações contra os políticos envolviam delações de diretores da Odebrecht.
Um ano antes, em agosto de 2016, os procuradores já estavam descontentes com declarações do ministro. Em uma conversa no chat “Parceiros/MPF — 10 medidas”, uma promotora identificada como “Luciana” disse que era preciso “acompanhar” as falas do ministro e responder tudo.
“Gilmar resolveu ser, escancaradamente, o porta-voz da estratégia que acabou com as mãos limpas, aniquilando a imagem do MP perante a sociedade. Respostas precisam ser dadas. A sociedade entende que quem cala consente”, afirmou ela.
“A veja me pediu uma entrevista sobre as 10 medidas. A Ascom deu ok. Vocês acham que devo falar algo em relação ao ministro Gilmar”, pergunta “Thamea” aos colegas no mesmo dia. As respostas dizem que não, e que é melhor usar a reação de associações e notas ou manifestações das “entidades da sociedade civil” que apoiam a “lava jato”.
“O que vocês sugerem fazer? Nota da ANPR (Associação Nacional de Procuradores da República)? Abaixo assinado de todos?”, questiona “Thamea”. Ela mesmo responde a indagação momentos depois. “ANPR tem que se manifestar então. Manifestações da sociedade civil acho que também conseguiremos.”
O modus operandi de soltar notas via ANPR para se defender sem se expor era prática comum. Em um diálogo de abril de 2018, o procurador Diogo Castor sugeriu uma manifestação da associação em sua própria defesa. Na ocasião, Gilmar criticou o potencial conflito de interesses na atuação de Diogo.
“Prezados, sobre a fala do Gilmar Mendes em relação a mim, duas opções: 1) emitir nota da ANPR. 2) ignorar. O que acham melhor? Gilmar sempre bate e ninguém faz nada. Por isso ele continua”, diz Diogo. Em seguida, ele afirma que redigiu uma nota para a ANPR.
“Tem que responder. A ausência de resposta pode ser mal interpretada, como se ele, Gilmar, possa ter alguma razão”, disse outro procurador. Januário Paludo concorda: “Acho que vale nota nossa e da ANPR em relação ao que nos toca”.
Os procuradores fofocavam entre si até antes de o ministro alguma qualquer coisa. “Gente, preparem-se, porque eu o vi entrando em um evento no Royal Tulip, sobre perícia”, disse um procurador. “Imagina se ele não vai vociferar…”, respondeu a procuradora “Janice”.
Bretas, o ‘evangélico ponta firme’
As decisões do ministro irritavam os procuradores ainda mais do que as declarações. Em 17 de agosto de 2017, Gilmar derrubou uma decisão do juiz Marcelo Bretas — da 7ª Vara Federal Criminal do Rio de Janeiro, atualmente afastado do cargo — contra os empresários Jacob Barata Filho e Lélis Teixeira, donos de empresas de ônibus no Rio. Deltan Dallagnol, coordenador da “lava jato”, reagiu prontamente.
“Caros, a decisão do Gilmar é absurda. Acho que vale a pena o MUDE repercutir e se posicionar. E mais, a decisão do GM é contra o Bretas, evangélico ponta firme (pelo que se fala)”, diz Dallagnol.
A insatisfação durou alguns dias. Em 19 de agosto, os procuradores começaram a planejar modos de afastar Gilmar do caso. Uma das maneiras propostas foi pressionar a ministra Cármen Lúcia para que Gilmar fosse declarado impedido.
“Pessoal, a única solução para o Gilmar será a turma aceitar seu impedimento”, disse “Luiza”. O procurador José Robalinho mostra pessimismo: “infelizmente não vai rolar”. Uma pessoa identificada como “Eduardo” diz que a pressão “tem que ser em cima de Cármen Lúcia”.
Outro colega sugere a edição de notas apócrifas. “Essa postura do ministro não merece uma resposta da ANPR, ou já nos acostumamos aos decretos e devaneios do Gilmar?. Acho que é uma boa hora de a ANPR dar uma cutucada no STF, para ajudar a isolar Gilmar”, diz “Hélio”.
Para “cutucar” Gilmar, valia se aliar a qualquer um. Em 25 de agosto, os procuradores comemoraram declarações do então deputado Onyx Lorenzoni contra o ministro.
Onyx, que anos depois admitiria ter feito caixa dois, foi tratado como “paladino”. “Virei fã. Nosso paladino. Toma Gilmar”, disse uma pessoa não identificada na conversa.
‘Precisamos de um estopim’
Os procuradores não ficaram só na tentativa de afastar Gilmar de casos da “lava jato”. Em 12 de abril de 2018, Dallagnol disse que eles deveriam atuar por um pedido de impeachment no Senado. Segundo o chefe da autoapelidada força-tarefa, no entanto, a solicitação deveria ficar em suspenso até que houvesse algum “estopim”.
“Esse Gilmar já passou da linha de limite há muito tempo. É de se pensar se não vamos além e representamos em algum momento ao Senado pelo impeachment. Precisamos, contudo, de um estopim.”
Em 16 de setembro do mesmo ano, o assunto ressurgiu. Na ocasião, os procuradores estavam incomodados com uma decisão de Gilmar mandando soltar Beto Richa, ex-governador do Paraná. A soltura ocorreu dois dias antes do diálogo.
“Dá pra deixar algo pronto. E talvez fazer antes”, disse Dallagnol. “A chance de impeachment do Gilmar é abaixo de zero. A questão é se fazemos a operação ou não. Se fizermos, seremos criticados e o GM vai descer a lenha em nós. Se não fizermos, seremos tachados de omissos”. Na ocasião, eles conversavam sobre uma operação contra o irmão de Richa, que acabaria por ocorrer no final do mês, depois da decisão de Gilmar que soltou o ex-governador.
Lista para processar Gilmar
Em 15 de março de 2019, os procuradores cogitaram processar Gilmar e chegaram a começar uma lista de interessados no processo. Na ocasião, eles estavam irritados com falas do ministro sobre a “lava jato”.
“Na sessão de ontem o ministro Gilmar Mendes ultrapassou todos os limites nas críticas, ofendeu de maneira contundente e por diversas vezes, ao proferir seu voto, os colegas da Lava Jato, o Ministério Público e as tratativas que resultaram na previsão da criação da fundação”, diz Roberson Pozzobon.
Gilmar havia criticado a tentativa de criar um fundo privado de “combate à corrupção” com dinheiro da Petrobras. A própria Procuradoria-Geral da República, em um pedido enviado ao Supremo, conseguiu barrar a criação do fundo.
“Pessoal, precisamos decidir se vamos pra cima do Gilmar com ação cível e criminal”, diz Dallagnol, que puxa o coro pelo processo. Ele sugere de novo uma tentativa de impeachment. O motivo? “Adjetivações” contra a “lava jato”.
“Se queremos o impeachment do GM, é algo que a meu ver contribui nessa direção. Será um repositório de todas as adjetivações que já usou contra nós”, fala Dallagnol.
Em seguida, “Welter” puxa a lista dos que já toparam processar o ministro: “QUEM VAI PROCESSAR O GILMAR MENDES: 1) Januário; 2) Deltan). Vamos resolver essa questão do processo”.
Originalmente publicado em ConJur
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