Por Leonardo Sakamoto
O estado de São Paulo deu uma aula de como (e para quem) funciona o seu sistema de segurança pública no intervalo de poucas horas.
Um homem cadeirante foi espancado por policiais militares ao tentar defender seu filho negro – que foi agredido e eletrocutado com tasers, antes de ser colocado em uma viatura e levado embora de sua residência simples, no dia 1º de abril, em Piracicaba, interior paulista.
Após Fernando Sastre, 24 anos, matar com seu Porsche 911 Carrera um motorista de aplicativo em São Paulo, no dia 31 de março, policiais militares deixaram que sua mãe o levasse embora da cena do crime sem nem fazer o bafômetro. Ele se apresentou à polícia apenas 38 horas depois.
A Secretaria de Segurança Pública diz que investiga a conduta dos dois policiais militares na evasão do motorista do carro que vale R$ 1,3 milhão e diz que afastou os dois PMs que chutaram o peito do cadeirante pobre. A ação, segundo a corporação, teria sido motivada por “desacato”.
Essas duas formas de tratamento não são oriundas de erros operacionais, mas consequência de um poder público que existe para proteger os mais ricos e conter os mais pobres. Pois é mais fácil o tal camelo passar pelo tal buraco da agulha do que o rapaz do Porsche ter o mesmo tratamento do cadeirante.
A desigualdade social dificulta que as pessoas vejam a si mesmas e as outras pessoas como iguais e merecedoras da mesma consideração. Leva à percepção de que o poder público existe para servir aos mais abonados e controlar os mais pobres. Ou seja, para usar a polícia e a política a fim de proteger os privilégios do primeiro grupo, usando violência contra o segundo, se necessário for. Com o tempo, a desigualdade leva à descrença nas instituições.
O que ajuda a explicar o momento em que vivemos hoje.
Policiais não são monstros alterados por radiação de um vazamento de Angra 2. Não é da natureza das pessoas que decidem vestir farda tornarem-se violentos. Elas aprendem. No cotidiano da instituição a que pertencem (e sua herança mal resolvida), na formação profissional que tiveram, na exploração diária como trabalhadores e na internalização de sua principal missão: manter o status quo.
Ao mesmo tempo, setores da polícia estão impregnados com a ideia de que nada acontecerá com eles caso não cumpram as regras – o que é reforçado por seus chefes civis. Outra parte sabe que a mesma sociedade está pouco se lixando para eles e suas famílias, pagando salários ridículos e cobrando para que se sacrifiquem em nome do patrimônio alheio.
Parte da população apoia esse tipo de comportamento policial. Gosta de se enganar e acha que se sente mais segura com o Estado agindo dessa forma. Essas pessoas são seguidoras da doutrina: “se você apanhou da polícia, é porque alguma culpa tem”, adotada livremente em chacinas policiais em São Paulo, no Rio, na Bahia. Nesse sentido, um motorista de Porsche pode ficar tranquilo que nunca terá culpa de nada.
Enquanto isso, o secretário da Segurança Pública de São Paulo, Guilherme Derrite, afirmou, nesta terça (2), que não sabia o número de mortos na Operação Verão na Baixada Santista. “Eu nem sabia que eram 56”, disse. Pesquisadores e entidades da sociedade civil reclamam que parte desse número foi execução até de pessoas com deficiência.
Ecoa o seu chefe, o governador Tarcísio de Freitas, que disse não estar nem aí para as denúncias de abuso policial no litoral. “O pessoal pode ir na ONU, pode ir na Liga da Justiça, no raio que o parta, que eu não tô nem aí”, bradou.
Diante disso, ricos podem dormir tranquilos. Quem deveria se preocupar são os pobres.