Publicado no ((o))eco
Enquanto o Ministério do Meio Ambiente faz a transferência temporária do gabinete de Salles e dos presidentes do Ibama e do ICMBio, para o Pará sob a justificativa de “acompanhar as operações conjuntas com a Força Nacional”, ordens da diretoria do ICMBio suspendem uma operação de fiscalização em andamento há mais de um ano que estava em vias de agir para retirar gado ilegal de dentro de uma unidade de conservação de proteção integral no estado.
O alvo da operação, liderada por cinco servidores desde fevereiro de 2020, era uma fazenda no interior da Reserva Biológica Nascentes da Serra do Cachimbo com mais de 1 mil cabeças de gado e que já registra 15 autuações que somam mais de R$59 milhões em multas, e mais de 2,2 mil hectares de áreas embargadas.
A decisão de suspender a operação veio do diretor de Criação e Manejo de Unidades de Conservação (Diman), o tenente-coronel da Polícia Militar do Estado de São Paulo, Marcos de Castro Simanovic. Fontes ouvidas por ((o))eco apontam, entretanto, que a ordem, na verdade, veio de cima, diretamente do ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles.
A ordem foi anunciada na última semana (04/05) durante uma reunião conjunta entre a Diman e as partes envolvidas na operação, sem maiores explicações e sem ouvir a área técnica. Em resposta ao ocorrido, servidores ambientais, não apenas do ICMBio, mas também do Ibama, do Serviço Florestal Brasileiro e do próprio Ministério, articulam uma paralisação e já confabula-se até mesmo a possibilidade de greve geral. O assunto deve ser discutido durante congresso da Associação Nacional dos Servidores da Carreira de Especialista em Meio Ambiente (Ascema Nacional) que será realizado neste final de semana.
((o))eco entrou em contato com Marcos Simanovic, que afirmou que: “a decisão foi tomada por mim, com base em informações técnicas e operacionais, que levaram à necessidade de adequação do planejamento para atender ocorrências de desmatamento e outras infrações flagrantes contra os recursos naturais do Bioma Amazônia. Foi uma priorização de escolha de alvos. Por questões de sigilo, necessário para o sucesso das ações, os detalhes não foram divulgados previamente. Em breve divulgaremos institucionalmente os resultados positivos dessa decisão pois estamos com as ações em andamento”.
A retirada do gado é vista como uma estratégia fundamental para atingir financeiramente os infratores que, mesmo com suas áreas embargadas, prosseguem com a criação e comercialização do gado ilegal. “Causar prejuízo à cadeia produtiva ilegal, instalada através do desmatamento e grilagem de terras públicas através da perda do produto originado do crime ambiental é a base das mais modernas teorias de enfrentamento de crimes diversos”, explica o ofício sobre a operação ao qual ((o))eco teve acesso.
Coincidência ou não, a Reserva Biológica Nascentes da Serra do Cachimbo, onde seria realizada a retirada do gado, está localizada em Altamira, um dos municípios incluídos, de acordo com a portaria do ministro, nas operações de fiscalização nem um pouco sigilosas a serem realizadas em conjunto com a Força Nacional nesta semana.
O município é o líder de desmatamento no Pará, com 736 km² desmatados apenas entre 1º de janeiro e 29 de abril deste ano, de acordo com o monitoramento do Deter, realizado pelo INPE. A reserva biológica também aparece na lista das unidades de conservação mais desmatadas do estado no período, com 22 km² de cobertura florestal perdidos somente nestes primeiros quatro meses de 2021.
A cronologia da operação
O planejamento da operação começou em fevereiro de 2020 quando o então coordenador da Coordenação Geral de Proteção (CGPRO), Diego Bezerra Rodrigues, montou uma equipe de cinco servidores com maior experiência para atuar na região sudoeste do Pará com o objetivo principal de desenvolver um trabalho de retirada de gado de áreas embargadas em unidades de conservação federais.
Em julho do ano passado, em parceria com a Unidade Especial Avançada (UNA) Itaituba, braço do ICMBio que coordena localmente as ações de fiscalização, foi fechado e aprovado um planejamento de execução, dividido em duas etapas. A primeira delas, batizada de “Operação X” teve início em setembro e tinha o objetivo de levantar informações para definir alvos, épocas e estratégias para retirada do gado. Devido às condições climáticas do final do ano, época mais chuvosa na Amazônia, foi decidido esperar o período seco, a partir de maio do ano seguinte, para prosseguir com a operação.
Em fevereiro de 2021, o alvo foi definido: a fazenda no interior da Reserva Biológica Nascentes da Serra do Cachimbo, com uma área de 2.260 hectares desmatados ilegalmente. Além das mais de mil cabeças de gado, dos embargos e multas milionárias, “a fazenda também conta com recomendação para desocupação imediata da área, conforme manifestações proferidas pela Coordenação de Matéria Fundiária da Procuradoria Federal Especializada junto ao ICMBio (PFE/COMAF), já que se trata de ocupação de gleba pública federal, sem qualquer documento autorizativo ou legitimador, associada à prática de ilícitos ambientais”.
Nos meses seguintes, de março e abril deste ano, foram acertados os acordos com as prefeituras que receberiam o gado recolhido como doação, e com a Força Nacional – que tem atuado em apoio ao ICMBio desde outubro de 2018 – para maior segurança na ação e aumento do efetivo, que envolveria cerca de 40 pessoas. O planejamento incluiu, além da compra de suprimentos e obtenção de hospedagem, o apoio de dois servidores veterinários para o suporte ao manejo e toda a tramitação jurídica necessária junto à Agência de Desenvolvimento Agropecuário do Estado do Pará (ADEPARA) para apoio nas questões sanitárias e de transporte do gado. .
No dia 22 de abril de 2021, entretanto, o servidor e coordenador da CGPRO, Diego Bezerra Rodrigues decidiu pedir exoneração do cargo, motivado – conforme apurou o Estadão à época – pelas imposições que foram feitas pela Instrução Normativa (publicada na véspera do pedido de Bezerra) que alterou o processo de autuação ambiental e que, segundo servidores denunciam, inviabiliza o trabalho dos fiscais.
De acordo com o ofício ao qual ((o))eco teve acesso, depois da exoneração do coordenador, oficializada no dia 27 de abril, foi realizada uma reunião dos envolvidos na operação com o substituto, Adriano Souza. Na ocasião, Adriano ficou de atualizar o diretor da Diman, Marcos Simanovic, sobre a operação.
Cerca de uma semana depois, no dia 4 de maio, o coordenador substituto informou que após uma reunião entre a Coordenação Geral de Proteção, a Diman, a UNA de Itaituba e a Gerência Regional Norte, “por ordem do diretor o enfoque da operação iria mudar para verificação de alertas de desmatamentos, e que não mais haveria retirada de gado, sem maiores explicações e, segundo os participantes da reunião, sem sequer ouvir a área técnica. Mesmo após reiteradas solicitações de revisão desse posicionamento por parte da equipe, tendo em vista mais de um ano de planejamento e grande montante de recursos públicos envolvidos nessa e nas etapas preparatórias, a diretoria se mostrou intransigente em sua decisão”, descreve o ofício.
Depois do redirecionamento, foi dada a quatro dos servidores envolvidos a oportunidade de optar se ainda se disponibilizariam para a operação, diante de sua nova configuração. Todos eles cancelaram sua participação devido à mudança no foco da operação e solicitaram que seus nomes fossem retirados de quaisquer ordens de serviço ou ordens de fiscalização referentes a ela.
Nota de repúdio dos servidores
A Associação Nacional dos Servidores da Carreira de Especialista em Meio Ambiente (Ascema Nacional) se manifestou através de uma nota oficial publicada nesta quarta-feira (12) em que repudia a decisão e solicita ao Ministério Público Federal, o Tribunal de Contas da União e demais autoridades competentes, “que apurem mais essa denúncia de mau uso de recursos públicos, que jogaram no lixo meses de trabalho de inteligência, sem que ocorresse o retorno esperado: a interrupção do desmatamento e a ocupação ilegal de unidade de conservação federal, contrariando os deveres constitucionais de proteção ao meio ambiente. Esperamos a apuração dos fatos relatados, para abertura de investigação e punição rigorosa sobre os nomeados políticos indicados por este governo, que têm corroído as instituições públicas de meio ambiente por dentro”.
No texto, a Ascema classifica a transferência temporária do gabinete do ministro como um circo, em que “busca expor aos holofotes da opinião pública os soldados da Força Nacional, seguindo as ordens do ministro para levantamentos de pátio de madeireiras e aplicação de multas de desmatamento”, enquanto “longe dos holofotes e por debaixo dos panos, o ministro desmonta a ação dos especialistas em meio ambiente”.
“Segundo a Ascema Nacional apurou, às vésperas da operação, ao tomar conhecimento dos detalhes, os militares que ocupam a direção do ICMBio ordenaram a mudança do alvo, e a modificação do foco da operação para o simples levantamento de outros alertas de desmatamento na região. Com toda razão, os servidores se recusaram a atuar na palhaçada armada pelo ministro”, continua o texto. “Tal ato da direção do ICMBio mais uma vez demonstra a necessidade de se combater a tentativa de reforma administrativa imposta por este governo que ataca o meio ambiente, usando palavras e atos, mas principalmente, funcionários comissionados que nada entendem de ambiente e agem para proteger infratores, como no caso exposto”, completa.