Um depressivo em abstinência confinado em um reality show definhando em rede nacional, privado de seus remédios e ridicularizado nas redes sociais pela aparência de morto-vivo: parece um conto de terror ou um episódio de Black Mirror (com menos qualidade narrativa que todos os outros, é claro), mas é a triste história de Fiuk no BBB 21.
O participante tem protagonizado alguns dos memes mais populares que circularam nas redes sociais nas últimas semanas por causa de sua aparência grotesca: “imagens reais de quando a alma de Fiuk deixou o seu corpo”, escreveu um internauta ao compartilhar uma foto em que o participante lembra um quadro de filme de terror.
Eu também ri dos memes – como não rir? – mas isso não me soa mais tão engraçado agora que sei que o meme em questão é portador de depressão, ansiedade e TDAH e não tem feito uso dos remédios durante o confinamento.
Nas redes sociais, a equipe do ator surpreendeu ao informar um fato omitido do público pela Rede Globo até então: o participante está em abstinência de remédios.
“Memes e piadas sobre a aparência e as condições mentais do Fiuk são de cunho extremamente desrespeitoso. A maneira que a sociedade sente prazer em brincar com a dor do próximo é devastadora. Os transtornos psicológicos e seus estigmas jamais devem ser motivos de zombaria. No programa, ele está em evidente abstinência de medicações para a depressão e ansiedade.”
A Globo respondeu em nota que “respeitando o sigilo médico-paciente, não divulgamos informações de tratamento dos participantes. Ressaltamos, porém, que o atendimento médico está sempre à disposição dos participantes durante todo o programa, assim como o atendimento psicológico.”
A emissora esquece, no entanto, que o debate sobre saúde mental é coletivo. Mais do que isso, urgente.
Fiuk não é, aliás, o primeiro privado de medicamentos nesta e em outras edições do BBB. Na vigésima edição, uma das participantes, Gabi Martins, disse que precisou interromper o tratamento pra depressão para participar do programa. “Eu comecei a tomar remédio todo dia pra dormir, pra viver. Quando entrei aqui não podia mais tomar, continuar”, disse em conversa com outros confinados.
Já em 2013, outra participante, Fani, denunciou que teve acesso aos seus remédios para depressão negados pela produção do programa. Já a influenciadora Rízia Cerqueira optou por interromper o tratamento para ansiedade por temer que isso pudesse ser um impeditivo à sua participação no reality.
Não é apenas a história de Fiuk que evidencia a irresponsabilidade da produção do Big Brother Brasil e da Rede Globo com portadores de transtornos mentais. Negar o acesso de doentes aos seus remédios não é uma escolha banal da produção de um programa de TV: é cruel e, sob certo ponto de vista, criminoso.
E se não é verdade que a produção do reality proíbe que os participantes levem seus remédios tarja preta receitados por psiquiatras para o confinamento, sendo assim contratualmente obrigados a interromper tratamento psiquiátrico, por quê ela mesma não diz isto?
Para além disso, a reação do público à aparência e comportamento de Fiuk (típicos de um depressivo sem tratamento), reflete o tratamento geral dado aos psicoatípicos do lado de fora do reality.
Curiosamente ou não, o comentário do internauta memeiro – “parece que a alma deixou o corpo” – explica com precisão a sensação de um depressivo sem tratamento: um corpo oco.
Eu também não gosto de Fiuk, por razões óbvias para quem assiste ao programa e também para quem não assiste – e não apenas pelo fato de ele e seu personagem emo de Malhação parecerem estar presos em 2011 (quando ainda era moda se sentir inteligente por ter aversão a reality shows) -, mas essa história, obviamente, vai muito além de Fiuk.
É sobre um reality show que trata portadores de doenças mentais com uma irresponsabilidade que o Século XXI já não comporta, e acaba por desnudar para um país inteiro um recorte do que os portadores de saúde mental vivem todos os dias: sofrimento visível a olho nu e ridicularização.
Embora seja muito sinistro observar depressivos em abstinência numa tela de TV, aparentemente o “programa populacho” trouxe à tona – com as olheiras e o choro de Fiuk – mais um debate urgente e muito menos fútil que um reality show.