Publicado originalmente no blog do autor
Sociologicamente falando, a eleição de Javier Milei à Presidência da República seria impensável num país como a Argentina – principalmente depois do debate presidencial de 12/11, quando o candidato Sergio teve um desempenho “Massa”crante sobre seu ridículo oponente.
Também do ponto de vista da racionalidade política seria difícil imaginar a vitória de alguém que anuncia abertamente a destruição de lógicas estruturantes da sociedade argentina.
Além da extinção do Banco Central, da dolarização, privatizações selvagens e ruptura com os principais parceiros comerciais, Milei promete também eliminar os subsídios econômicos, as aposentadorias, pensões e auxílios sociais; e, ainda, propõe substituir a ação do Estado pelo “salve-se quem puder” – a liberação do comércio de órgãos humanos é a expressão mais lúgubre da visão ultraliberal libertarianista que ele defende.
Milei é uma espécie de “anti-consciência” nacional argentina. Ele representa a negação da alma e do povo argentino sobrevivente da traumática e cruel ditadura sanguinária e das suas técnicas infames de assassinato e terror.
Milei significa uma ofensa a todos os pactos de convivência política, civilizada e democrática – tanto os acordos escritos e institucionalizados na sociedade argentina, como aqueles não-escritos, mas orientadores da vida e das relações sociais.
Apesar disso tudo, no entanto, as chances de Milei ser eleito são consideráveis.
O “fascínio irresistível” de se jogar no abismo como porta de fuga do mal-estar específico ou difuso, parece acometer milhões de eleitores que pretendem conferir a Milei a maioria na votação que se encerra logo mais, às 18 horas deste domingo, 19 de novembro.
Milei surfa na onda do “sonambulismo” e “abdução” de enormes contingentes desiludidos com o sistema e com a “casta” da qual ele próprio faz parte, mas que ele consegue simular combater com truques de marketing e mentiras descaradas.
A Argentina vive um clima semelhante à eleição no Brasil em 2018, em que a lógica e a razão foram anestesiadas pelo ódio e pela ode à violência política, à destruição, e ao aniquilamento do inimigo.
O resultado da votação do primeiro turno em 22/10 insinuou uma reviravolta eleitoral em relação aos desempenhos dos candidatos nas eleições primárias de 13 de agosto. Todavia, essa reviravolta poderá não se materializar neste segundo turno.
A vantagem do candidato Sergio Massa em 22 de outubro, a quem faltou apenas 3,3% para consolidar a vitória definitiva já no primeiro turno, acalentou a sensação de favoritismo do peronismo, como analisado no artigo O 1º turno e a nova dinâmica eleitoral na Argentina.
No primeiro turno, Massa foi quem mais se beneficiou do crescimento de três milhões de eleitores que compareceram às urnas em relação às primárias – ele ganhou 2,926 milhões votos a mais em relação às primárias de 13 de agosto.
Massa obteve ao todo 9,6 milhões votos contra 14 milhões somados da direita extremada mais a extrema-direita – Patrícia Bullrich, que empregou uma retórica extremista próxima a Milei, teve com 6,2 milhões, e Milei ficou com 7,8 milhões de votos.
Uma das premissas centrais para valorizar o potencial positivo de Massa era a de que Milei teria alcançado seu teto eleitoral máximo, e de que Massa havia recuperado o piso eleitoral mínimo do peronismo e do kirchnerismo depois do pior desempenho eleitoral do peronismo na história, acontecido nas PASO [eleições primárias].
Outra premissa considerava que, no segundo turno, os 6,2 milhões de votos dados a Patrícia Bullrich ficariam divididos de modo equilibrado entre Milei e Massa devido aos eleitores do radicalismo [UCR] e de Horácio Larreta [prefeito de Buenos Aires], enquanto os 1,7 milhões de eleitores de Schiaretti e os 709 mil de Bregman optariam, majoritariamente, por Massa.
As pesquisas das últimas semanas convergem, no entanto, na identificação de cenários que não confirmam as premissas acima, e mostram que uma maioria significativa dos 7,9 milhões de eleitores que votaram em Bullrich e Schiaretti no primeiro turno poderão optar por Milei.
Os desempenhos de Bullrich, de Milei e Schiaretti no primeiro turno em províncias como Mendoza, Córdoba, Santa Fé e Entre Ríos, assim como na cidade de Buenos Aires, locais que perfazem quase 35% do eleitorado, ilustram a dificuldade de Sergio Massa.
Jovens e adultos jovens até 34 anos de idade, que perfazem 38% do eleitorado, se inclinam pela “novidade” para “mudar tudo o que aí está” – um universo significativo, que não tem a memória do significado das propostas autoritárias defendidas pelo “libertário”.
Se Milei vencer, o ex-presidente Maurício Macri será o grande vitorioso depois de, há poucas semanas, ter sido responsabilizado pelo fraco desempenho da coalizão Juntos pela Mudança com Bullrich no primeiro turno.
Se, todavia, Massa vencer, sua vitória será uma verdadeira epopéia, porque ele terá sido capaz de superar dificuldades impressionantes.
Na realidade, Sergio Massa é um anti-candidato – ou um candidato heróico, que conseguiu chegar onde chegou, diante das contradições concretas que enfrenta.
Ele é o ministro de uma economia à beira da hiperinflação, de taxas absurdas de desemprego e de índices recordes de pobreza e miséria.
Mesmo com uma retórica independente, Massa representa um governo que é reprovado por 77% da população e é o candidato de uma coalizão integrada pela vice-presidente Cristina Fernández de Kirchner, em relação a quem mais da metade da população [54,7%] considera justo o lawfare criminoso perpetrado pelas oligarquias contra ela.
Se vencer, Massa ainda terá o mérito de conseguir derrotar a poderosa máquina de mentira e de manipulação fascista que entorpece a mente de milhões e corrompe a democracia.
Por tudo isso, portanto, se acontecer a vitória de Sergio Massa contra a vilania, a torpeza e o fascismo, será uma verdadeira epopéia do povo argentino.