Estupro: entrevistamos Vana Lopes, a vítima que caçou Roger Abdelmassih. Por Nathali Macedo

Atualizado em 1 de junho de 2016 às 3:24
Vana Lopes
Vana Lopes

Vana Lopes é uma das vítimas do médico Roger Abdelmassih, condenado por cinquenta e oito estupros e benefiado por um habeas corpus de Gilmar Mendes

Vana foi uma das mulheres dopadas e estupradas pelo médico, aos trinta e três anos, durante um procedimento de inseminação artificial. Ela nos conta que acordou e se deu conta de que estava sendo penetrada pelo condenado.

Após o estupro, ela reuniu outras vítimas em um grupo organizado e iniciou uma guerra contra seu agressor: iniciou uma caçada até encontrá-lo e vê-lo condenado pelos crimes que cometeu.

Hoje, o grupo Vítimas Unidas não conta apenas com vítimas de Roger, e reúne mulheres violentadas por todo o país, funcionando como um centro de apoio às vítimas de violência sexual. Uma flor que nasceu em meio à selva de pedra, eu diria.

Como você lida, ainda hoje, com o trauma da violência que sofreu? Eu assisti uma entrevista em que você diz que o estupro deixa uma cicatriz que não se pode apagar. Pode nos contar um pouco sobre isso?

É muito difícil porque é realmente uma cicatriz que não apaga nunca, a gente só consegue transferi-la de lugar, e eu tenho feito isso ajudando outras vítimas. Outro dia, eu estava falando com uma delas que estupradores são assassinos, que nos condenam a vagar num corpo onde a alma, que era uma alma sonhadora, fica morta, porque ele mata sonhos, ele mata uma poesia, e isso é difícil de resgatar. Na verdade, por experiência própria, eu acho impossível. Aquela inocência a gente não resgata mais.

Eu tenho colocado um curativo nessa ferida ajudando outras pessoas, porque essa ânsia de justiça é um tipo de remédio. Tanto que o Vítimas Unidas têm recebido muitos pedidos de ajuda.

Eu me sinto impotente, porque eu não consigo ajudar todas. Nos casos antigos, por exemplo, a lei prescreve. Estou acompanhando vários casos de estupradores, médicos principalmente. E agora, com o caso dessa menina [estupro coletivo no Rio de Janeiro] o país está indignado, e eu também estou, porque essa turma de jovens que está se formando parece não ter consciência de que sexo sem consentimento é crime.

Você felizmente pôde denunciar seu algoz, mas muitas mulheres são violentadas em circunstâncias que impossibilitam a denúncia. Mulheres negras e pobres, que são culpabilizadas e demonizadas por estarem à margem da sociedade, e acabam não conseguindo sequer ser ouvidas. Você acha que sua condição social tornou possibilitou que você conseguisse caçar seu algoz com mais eficiência?

A ânsia de justiça, essa justiça ferida, rasgada no peito de uma mulher, ela não tem preço. A lei estabelece indenizações morais pra vários tipos de crime, mas realmente no crime de estupro não existe um valor que indenize.

Pra você caçar seu algoz, você não precisa de dinheiro, precisa de determinação. Eu tenho visto homens de todas as situações financeiras sendo denunciados. O que está faltando, na minha opinião, é credibilidade para a palavra da mulher.

É um crime sem testemunhas, é um crime secreto, em que o algoz tem justamente a vantagem de fazer na calada, por debaixo dos panos, contra uma vítima indefesa. Por isso a vítima fica sem argumentos, sem credibilidade.

O problema maior está no descrédito, porque a violência sexual ultrapassa classe social, a justiça, neste caso, mesmo a vítima sendo pobre, quando o crime é bárbaro, ela tem agido.

O que eu não tenho conseguido de forma nenhuma é que a imprensa divulgue. A imprensa não têm espaço para todos os casos, mas há condições de agir em qualquer classe.

A propósito, apesar de o criminoso que me violentou ser um dourado violentador, eu o cacei sem dinheiro, contei com a boa vontade de outras pessoas. Exatamente através dessa empatia que esse exército de mulheres tem.

No caso dessa menina vítima de estupro coletivo, agora ela está sendo vítima de uma violência moral. São mais de mil pessoas da turma dos violentadores que se reuniram pra difamar a moça, pra tirar a coragem dela. Eu estou conseguindo a ajuda de advogados para auxiliar no caso.  

Então, é muito importante (e eu agradeço esse espaço) mostrar que a vítima precisa de credibilidade. Vítimas têm me procurado demais porque eu estou falando esse vitimês, de vítima para vítima, e o que ela mais precisa neste momento é que as pessoas não a critiquem, que a recebam de braços abertos.

Eu recebo muitos relatos, eu tenho quatro mil e-mails e tenho procurado dar atenção a cada um. Atendo vítimas de todo o país e de toda a situação. É nesse ponto que a imprensa é importante, porque quando o caso é divulgado contra poderosos, a imprensa tem uma cooperação maior para oferecer. A vítima se sente mais protegida no momento em que seu violentador é exposto.

Você criou um verdadeiro exército de vítimas do monstro estuprador, unidas em torno do objetivo de fazer justiça. Como se deu esse processo de aproximação? O que esse exercício de sororidade pôde te ensinar?

A imprensa divulgou que somos “a união das vítimas de Roger”, mas há muito tempo ultrapassamos isto. Eu tenho colaboração de vítimas de outros estupradores, inclusive amigos e parentes dessas vítimas. Nós somos pérolas – que como diz Rubem Alves, é fruto de uma dor – e por isso, entre nós, nos chamamos de pérolas. Nós não podemos deixar que isso acabe com o nosso brilho, mas a ferida é muito dolorida.

Nós não queremos assassinar essas pessoas, queremos justiça. Justiça com unhas pintadas, uma justiça limpa. Nós precisamos que as pessoas gritem e peçam por justiça.

Gilmar Mendes concedeu um habeas corpus ao homem que destruiu a vida de várias mulheres. Kenarik Boujikian Felippe foi a juíza que o condenou. Dito isto, como vítima e sendo formada em direito, qual a sua opinião sobre a necessidade de despatriarcalização do Judiciário brasileiro? Ter mais mulheres trabalhando em casos de estupro seria eficiente para que a justiça fosse de fato alcançada?

Eu fiz uma moção de repúdio contra o Gilmar há algum tempo, que está no meu livro, Bem-vindo ao inferno. Essa moção foi a única coisa que eu consegui fazer contra ele, por conta da decisão fria de soltar aquele violentador. Nós vivemos uma ditadura judicial. É impossível questionar uma decisão do Supremo, eles são semideuses nesse sentido, não se pode fazer nada contra a decisão deles e não há como processá-los, eles são o fim da justiça.

Apenas fora do Brasil, após vinte anos, estou processando o Brasil em uma Ação Internacional pelo descaso.

Quanto à despatriarcalização, eu tenho o apoio de muitos homens solidários. O problema não está no gênero, está na violência. Muitos homens são solidários e têm filhas, mães, irmãs. Não descriminamos nada no nosso grupo, atendemos inclusive pessoas transexuais.

Se há um lado, é o lado dos feridos. E é esse lado que nós precisamos defender.

Nota: O grupo Vítimas Unidas atende pelo e-mail vitimas-unidas@hotmail.com