O jornalista Calos Alberto Sadenberg tem contato algumas mentiras para tentar criar o consenso de que a prisão a partir de decisão de segunda instância é uma tradição no Brasil.
“Desde o Código de Processo Penal de 1941, as prisões no Brasil se davam em segunda instância. Ficou ali expresso que as prisões se dão em segunda instância. Isso foi valendo no Brasil nos anos 40, 50, 60, 70, 80, 90, anos 2000”, disse ele em um programa da CBN.
O áudio tem sido reproduzido nos sites de extrema direita, para convocar militantes para pressionar o Supremo Tribunal Federal a rejeitar a ação da OAB que defende o restabelecimento do princípio constitucional da presunção de inocência.
Segundo Sardenberg, nem a Constituição de 1988 mudou esse entendimento.
A mudança só teria acontecido em 2009, quando o Supremo Tribunal Federal, julgando um habeas corpus impetrado por um produtor rural condenado por tentativa de homicídio, decidiu que a prisão só poderia acontecer depois de esgotados todos os recursos.
“E aí tem que contar um pouco de história. Por que mudou em 2009? Porque era o pessoal do mensalão. Os tigrões do mensalão começaram a chegar”, afirmou.
Sardenberg tenta pintar com cores de erudição o que é um embuste facilmente desmontável. Primeiramente: Por que os “tigrões”do mensalão teriam interesse de mudar a jurisprudência se o caso de todos eles estava sendo julgado diretamente na última instância, o STF, por conta do foro privilegiado de alguns denunciados?
Antes de Sardenberg falar para a audiência da CBN, essa mesma falácia era contada pela turma de Deltan Dallagnol, mas para quem é do meio jurídico a conversa não cola.
Serve, no entanto, como combustível para inflamar ânimos, como o de pessoas como aqueles três que, covardemente, agrediram uma mulher na Paulista domingo, pela simples razão de terem -na ouvido comentar com um amigo que achava desnecessária uma manifestação de apoio à Lava Jato.
Na verdade, ao contrário do que diz o jornalista, nunca houve entendimento pacífico de que a prisão poderia se dar na primeira ou segunda instância desde o Código de Processo Penal de 1941.
Na verdade, o juiz é que decidia o momento em que o condenado iniciaria o cumprimento da pena. Poderia acontecer na primeira instância ou poderia não acontecer nem na segunda instância.
Durante a ditadura, por exemplo, as prisões poderiam acontecer até sem sentença, e por razões que o delegado (não precisava nem de juiz) invocasse. Era a prisão para averiguação, determinada por um papelzinho assinado pelo chefe da delegacia.
Em 1988, para evitar prisões arbitrárias, os constituintes decidiram impor um princípio rigoroso. No inciso 57 do artigo 5o, considerado cláusula pétrea e que, portanto, não pode ser alterado, está escrito: “Ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”.
O inciso 61 define: “Ninguém será preso senão em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada de autoridade judiciária competente, salvo nos casos de transgressão militar ou crime propriamente militar, definidos em lei”.
Em 2011, como resultado do trabalho de uma comissão de juristas formada pelo Senado Federal, foi incluído no Código de Processo Penal o artigo que torna ainda mais clara a previsão constitucional:
“Ninguém poderá ser preso senão em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada da autoridade judiciária competente, em decorrência de sentença condenatória transitada em julgado ou no curso da investigação ou do processo, em virtude de prisão temporária ou prisão preventiva”.
Como se vê, não há nenhuma relação com o mensalão, mas com a preocupação com as garantias constitucionais.
Também não é o triunfo da impunidade, já que bandidos perigosos ou de acusados que coloquem em risco a investigação podem ser preso por medidas cautelares, sempre justificadas.
Repita-se: no caso do mensalão, os acusados estavam sendo julgados na última instância e, portanto, essa alteração legislativa ou de jurisprudência não poderia alcançá-los.
Sardenberg, no entanto, chama essas mudanças de “casuísmo”, para atender o interesse dos acusados.
Casuísmo ocorreu em 2016, quando o ministro Teori Zavascki, relator da Lava Jato, votou contra a jurisprudência de 2009.
Era um habeas corpus apresentado em favor de um garçom de Itapecerica da Serra, condenado por roubo, mandado para a cadeia depois de uma decisão de segunda instância.
Teori manteve a prisão e teve seu voto acompanhado pela maioria dos ministros: apenas Marco Aurélio Mello, Celso de Melo, Ricardo Lewandowski e Rosa Weber votaram contra.
Alguns semanas antes, Sergio Moro havia publicado artigo no jornal O Estado de S. Paulo, em que defendia a prisão a partir de sentença de primeira instância como medida para enfrentar a corrupção.
Havia, portanto, a pressão da Lava Jato para mudar a jurisprudência do STF. E ela foi mudada, mas, desde então, há resistência dos juristas, representados pela OAB.
Ainda no primeiro semestre de 2016, a entidade entrou com ação para restabelecer o princípio constitucional da presunção de inocência.
É esta a ação que o STF está demorando a julgar. Ela está pronta para ser analisada pelos ministros desde dezembro de 2016, quando o relator, Marco Aurélio Mello, entregou seu voto.
Quando era presidente da corte, Carmem Lúcia disse que não iria pautá-la para não “apequenar” o Supremo.
Dias Toffoli marcou o julgamento para hoje, 10 de abril, mas depois retirou a ação da pauta, “a pedido” da OAB, que pediu tempo para estudá-la melhor.
Isso sim é casuísmo.
A ação foi proposta pela OAB antes mesmo que Lula fosse denunciado, e teve tramitação normal até que surgiu no horizonte a condenação em segunda instância do ex-presidente, e as pesquisas indicavam que ele venceria as eleições.
Solto, ainda que não pudesse se candidatar, Lula talvez fosse o único brasileiro em condições de organizar a oposição e impedir o avanço da extrema direita no Brasil.
Sardenberg empresta sua locução agora para esse movimento que quer impedir a liberdade de Lula, ao dizer que, dos 194 países que são membros da ONU, em 193 a prisão ocorre em primeiro ou segundo grau.
Ele não cita de onde tirou esse dado, mas, dos países da OCDE, pelo menos um não segue essa regra: Portugal.
“Se você olhar, a regra é prisão em primeiro instância. Até para chamar a atenção aqui dos ouvintes: o pessoa já viu isso em filme. Aquele filme de tribunal e tal, em que o juiz de primeira instância dá a sentença, e o cara sai algemado”, afirmou.
O que ele não conta é que, no país cenário dos filmes — os Estados Unidos —, os julgamentos em geral são feitos por júri, o que impede a concentração de poder em magistrados como Sergio Moro, que participa da investigação, concedendo medidas cautelares, e depois julga, como se fosse imparcial.
Em um júri escolhido por critérios objetivos, Lula dificilmente seria condenado, e Moro jamais se tornaria superministro.
A Lava Jato é um grande casuísmo.