POR JOAQUIM DE CARVALHO E PEDRO ZAMBARDA
Márcio Rodrigues Dantas, o homem que gerou a mudança de jurisprudência no STF quanto à prisão a partir de decisão de segunda instância, cumpre prisão em regime semi-aberto há cerca de um ano, numa penitenciária em Campinas.
Até ser recolhido, ele vivia numa casa modesta, no Jardim Jacira, periferia de Itapecerica da Serra. Foi seu pai, Marco Antônio Dantas, quem construiu o imóvel quando a região era puro barro, cerca de trinta anos atrás.
Marco Antônio Dantas atende ao portão e, meio desconfiado, pergunta quem somos. Após se certificar de que somos jornalistas, ele começa a falar sobre o crime de que o filho foi acusado, roubo.
“Se ele tivesse roubado, eu teria visto algum dinheiro com ele. Mas nunca vi. Ele até morava comigo porque não conseguiu para pagar o aluguel da casa onde morava com a mulher e dois filhos”, conta.
Metalúrgico, Marco Antônio trabalhou dezesseis anos em uma fábrica de bicicleta até que uma doença na coluna o levou a ser encostado pelo INSS. Depois de algum tempo, perdeu o benefício, mas não conseguiu se recolocar. Continua sem condições de trabalhar e agora tenta recuperar a pensão na Previdência.
“Hoje quem sustenta a casa é milha mulher”, afirma. A esposa de Marco Antônio, mãe de Márcio, é empregada doméstica e, graças aos vínculos da patroa dela, é que conseguiu uma advogada para defendê-lo.
Márcio Rodrigues Dantas foi acusado de roubar R$ 2,6 mil no dia 16 de setembro de 2010. Na época tinha 20 anos de idade, sem passagem alguma pela polícia. A suspeita sobre ele aconteceu em razão do ladrão ter usado uma Twister amarela, igual a que ele tinha.
A moto usada no crime pode ter sido a dele, mas pode não ter sido, já que nenhuma testemunha anotou a placa, e o crime aconteceu na esquina da casa onde mora, o que, se verdadeira a acusação, revela a inexperiência do rapaz no crime: Que ladrão vai assaltar perto de casa?
Para o Tribunal de Justiça, não houve dúvida. Ele teve a condenação confirmada, e sua advogada ingressou com habeas corpus no STF para que ele não fosse recolhido à cadeia, como determinou a Justiça, mesmo com recurso ainda para ser julgado pelas cortes superiores.
O julgamento do HC ocorreu em fevereiro de 2016, auge da Lava Jato. O relator, Teori Zavascki, votou pela legalidade da prisão.
Era um caso comum do STF, mas o julgamento ganhou importância depois que o Sergio Moro teve um artigo seu publicado na imprensa em que defendia o encarceramento de condenados a partir de sentença de primeiro grau.
Para surpresa dos juristas, a maioria da corte votou de acordo com o entendimento de Teori Zavascki. O votos contrários foram de Marco Aurélio Mello, Celso de Mello, Ricardo Lewandowski e Rosa Weber.
Após o julgamento, Marco Aurélio alertou para o que considerava um erro. “O STF rasgou a Constituição”, afirmou.
A advogada de Márcio, Cláudia Seixas, em entrevista ao site Migalhas, também protestou: “Feriram o princípio de presunção de inocência. E outros princípios também foram feridos. A Constituição foi arranhada de forma inexplicável. Essa decisão nos entristece muito”, disse a advogada.
A Lava Jato pressionava o STF para que a prisão a partir de decisão de segunda instância fosse autorizada.
O argumento público era a necessidade de quebrar o ciclo da impunidade, mas é inegável que essa medida ajudaria na conclusão de acordos de delação premiada, base da operação.
Sem a Lava Jato, é quase certo que Márcio Dantas obteria o HC, como era a jurisprudência do STF desde 2009. Mas, para ele, não teve jeito.
“Eu sei que, na prisão do meu filho, tem muita política envolvida. Mas eu só espero agora que ele cumpra a sentença e volte para casa”, diz Marco Antônio, enquanto seu neto, com uma bola na mão, se aproxima.
“Entra para a casa. Não vai jogar bola aqui fora, não”, ordena. “A mãe dele está trabalhando, e sou eu quem cuido deles”, conta. Logo depois, outro menino aparece. “Também é filho dele”, conta.
O DCM teve acesso ao processo de Márcio Rodrigues Dantas.
Já transitou em julgado, e ele foi condenado a cinco anos e quatro meses de prisão em regime semiaberto, incluindo multa de 221 reais.
“Acusaram meu filho de um crime que ele não tem qualquer envolvimento. Não tem nada a ver. Ele não estava com o dinheiro. Nunca vi dinheiro com ele”, insiste.
Perguntamos por que, então, foi acusado desse crime? Para o pai de Márcio, pegaram qualquer pessoa que tivesse “uma moto amarela”.
No processo, Márcio é apresentado como assistente de de garçom, profissão que, segundo o pai, o filho nunca exerceu. “Ele ia de casa para o trabalho, do trabalho para casa. Era servente de pedreiro e fazia bicos”.
“Eu mesmo ajudei ele a comprar essa moto. Era pra trabalhar”, completa.
O pai disse que a moto foi comprada e estava com pagamento em dia. Mas depois, em dificuldade financeira, a família não conseguiu pagar o IPVA e licenciar o veículo. Perdeu o bem.
“O Márcio não tinha dinheiro pra pagar um aluguel. Ele morava comigo pra gente construir um puxadinho pra ele. Assim que ele sair da prisão, vamos terminar a construção”.
A família disse que Márcio ficou assustado e sem saber o que ia acontecer com a condenação.
Márcio Rodrigues Dantas foi preso na porta de casa, indo para o trabalho.
Foi aí que a vida de Márcio encontrou a biografia do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Sua condenação foi usada para mudar o entendimento no STF quanto ao princípio constitucional da presunção de inocência.
Quando o HC de Márcio foi rejeitado no STF, Lula não tinha sequer sido denunciado pela equipe de Deltan Dallagnol.
A condenação de Lula era uma ficção que servia apenas para ilustrar a capa da revista Veja, que publicou a imagem em que o ex-presidente aparecia com roupa de presidiário, igual ao boneco inflável usado nas manifestações.
A Lava Jato transformou em realidade o que era uma peça de propaganda contra Lula e o PT.
Entre os que apoiavam as manifestações da direita, estava o pai de Márcio. “Sempre votei no PSDB. Acho que o PT é da baderna”, diz ele, que votou em Bolsonaro na última última eleição.
“Se o Haddad não conseguiu se reeleger para prefeito em São Paulo, não merecia o voto para presidente. Votei no Bolsonaro para ver o que dá. Ele já ia ganhar mesmo”, diz.
Marco Antônio declara que, por enquanto, não se arrepende. “Estou esperando a aprovação da reforma da Previdência para ver se o Brasil deslancha”, afirma, repetindo a mensagem dos telejornais.
Mas a reforma vai ser ruim para ele, já que terá de esperar mais tempo para se aposentar. Isto é, se conseguir se aposentar um dia, já que, após passar um tempo encostado no INSS, ele deixou de contribuir.
“É verdade. Mas dizem que, com a reforma, vai ter mais emprego. Vamos torcer”, diz.
Sobre a condenação de Lula, Marco Antônio se contradiz. Num primeiro momento, diz que ele é culpado. “Deixou muita gente roubar”, afirma, mais uma vez ecoado os telejornais.
Um pouco adiante, no entanto, comenta: “Mas a imprensa diz muita coisa, e não tem prova de que ele é culpado.”
Marco Antônio concorda com a entrevista gravada, mas não quer ser fotografado de frente. Não quer se expor e até nem faz questão de que o entendimento sobre a segunda instância mude.
“Dizem que vão sair muitos bandidos da cadeia. Eu não quero isso”, afirma.
Informado de que criminosos perigosos não seriam alcançados por um eventual resgate do princípio constitucional da presunção de inocência, já que, para eles, continua valendo a prisão cautelar justificada, ele parece não se importar.
“Daqui a pouco, meu filho sai da prisão, por cumprir a pena, e nós vamos viver juntos outra vez”, afirma.
Nos últimos anos, Marco Antônio passou por grandes dificuldades. Depois da prisão de Márcio, ele perdeu o filho mais novo. O jovem estava jogando futebol e teve morte súbita.
“A vida é difícil, mas a gente não pode se entregar”, diz.
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PS:
- Neste feriado de Páscoa, estava prevista a ida de Márcio Dantas para a casa, de acordo com a regra de saída temporária.
- O julgamento da ação direta de constitucionalidade proposta pela OAB para resgatar o princípio constitucional estava previsto para o dia 10 de abril, mas foi adiado por tempo indeterminado.
- O recurso de Lula contra a condenação imposta por Sergio Moro não tem data para ser julgado no STJ.
- Na última quinta-feira, 18 de abril, o STF autorizou Lula a conceder as entrevistas solicitadas antes da eleição.