Por Paulo Nogueira Batista Jr.
Estamos em estado de choque, leitor. Começo este artigo na noite de domingo, dia do primeiro turno. Tinha um outro artigo, praticamente pronto, para publicar na segunda-feira seguinte, intitulado “O terceiro turno”, no qual fazia considerações sobre a pretensão do poder econômico-financeiro de colonizar o futuro governo Lula. Um resumo chegou a ser publicado na revista Carta Capital. A versão completa foi, porém, engavetada para uma ocasião mais oportuna, por motivos óbvios.
Recapitulo brevemente. Até domingo, havia dois cenários considerados possíveis – vitória de Lula, raspando, já no primeiro turno; ou decisão no segundo turno, com Lula vencendo o primeiro com vantagem muito ampla. Contudo, as pesquisas erraram feio, por motivos ainda não inteiramente claros, não só na presidencial, onde subestimaram os votos para Bolsonaro, como em vários Estados, destacadamente em São Paulo. A vantagem de Lula acabou sendo significativa, porém inferior ao previsto, até mesmo em pesquisas de véspera.
Agora é a guerra do segundo turno. Guerra, sim. E essa era uma das razões para liquidar a parada no primeiro turno. O que se viu foi um Bolsonaro mais forte do que o esperado. O bolsonarismo, fenômeno que transcende a pessoa do líder e as fronteiras brasileiras, se mostrou mais forte do que imaginávamos e do que indicavam as pesquisas. A mesma coisa se viu em outros países nos anos recentes – nos EUA e em diversos países da Europa, há pouco na Suécia e na Itália.
Frustraram-se as expectativas um pouco infladas de vitória no primeiro turno. A decepção com o desempenho acima do previsto de Bolsonaro, assim como a força dos candidatos apoiados por ele, inclusive lixos notórios, em eleições para governos de Estado e para o Congresso, levaram a um sentimento de desânimo e derrota. Grande parte da esquerda derramou-se em lamúrias. Alguns começaram a atacar o Brasil inteiro – um país que deu, leitor, vantagem de mais de 6 milhões de votos a Lula, quase o elegendo no primeiro turno! Meio ciclotimicamente, muitos passaram da euforia ao desespero em questão de horas. Esqueceram-se do que dizia Tom Jobim: “O Brasil não é para principiantes”!
Por outro lado, leitor, um outro grande artista brasileiro, Nelson Rodrigues, lembrava que “a vitória sofrida é mais doce”. Vamos em frente, portanto.
Mais doce, mas mais arriscada, claro. A eleição será dura, tudo indica. E a vitória de Lula não está garantida.
A economia é um dos dados da conjuntura que precisam ser levados em conta, como sempre. O nível de atividade econômica e o mercado de trabalho melhoraram gradualmente ao longo de 2021. O PIB está crescendo mais do que se previa no início do ano, com o crescimento projetado para algo entre 2,5% e 3%. A taxa de inflação esperada para o ano caiu para menos de 6%. O nível de emprego aumentou – inclusive mais do que o PIB, e a variável emprego pesa mais do ângulo político do que o crescimento do produto. O aumento da elasticidade aparente do emprego em relação ao produto precisa ser investigado, mas parece dever-se em parte à mudança na composição do PIB, com crescimento do peso relativo do setor serviços, mais intensivo em trabalho.
O desemprego continua alto, em 8,9%, mas vem caindo – apesar do aumento na taxa de participação, isto é, da relação entre a população economicamente ativa e a população em idade de trabalhar. A taxa de informalidade, ainda alta, quase 40%, caiu um pouco, graças ao crescimento do emprego formal.
Com as medidas de estímulo adotadas, notadamente o aumento do Auxílio Brasil, é provável que a economia e o emprego continuem crescendo ao longo do mês de outubro, nas semanas que antecedem o segundo turno. E, como dizia, Juan Perón (e não Delfim Neto, como eu cheguei a dizer aqui nesta coluna), o bolso é a parte mais sensível do corpo humano.
Olhando para além da conjuntura, os resultados de domingo deixaram claro, para quem tinha dúvidas, que estamos diante de um fenômeno da maior importância – a força eleitoral no Brasil da ultradireita, fascista ou protofascista, espelhando o que vem acontecendo em outras partes do mundo. Bolsonaro e o bolsonarismo não são, infelizmente, um ponto fora da curva. Essa ultradireita, mais agressiva, mais primitiva do que a direita tradicional, é uma verdadeira onda aqui e em outros países.
Não vou tentar caracterizá-la agora, com suas várias facetas, pois essa ultradireita já é uma conhecida nossa. Limito-me a inseri-la, em rápidas pinceladas, na história política brasileira. Desde que voltaram as eleições diretas para presidente em meados do século 20, o Brasil teve algumas ondas políticas poderosas. A primeira, inaugurada por Getúlio Vargas, passou por JK, Jango e terminou com Brizola – depois de ter sido interrompida pelo golpe militar de 1964. A segunda onda, inaugurada por Lula e pelo PT, surgiu nos anos 1980 e está viva até hoje, graças em grande medida ao talento e carisma do seu principal líder político. A terceira onda é o bolsonarismo, que também tem, quer gostemos, quer não, um líder carismático e popular. Hoje existem, na verdade, apenas dois líderes políticos que têm conexão com o povo – Lula e Bolsonaro, e não por acaso os dois se enfrentarão no segundo turno.
A onda Lula-PT, mais antiga, envelheceu? “Aburguesou-se”? Ou conserva o dinamismo original? É o que veremos nas próximas semanas. Como o PT e os demais setores da esquerda e da frente ampla se comportarão? Estarão à altura do desafio?
Apesar de tudo que escrevi acima, Lula continua o favorito. Saiu vencedor do primeiro turno, como ressaltei. A bancada do PT e de outros partidos de esquerda cresceu. Houve também vários pontos positivos nas eleições para governadores e para o Parlamento. Lula tem potencial para ampliar ainda mais sua aliança, já muito ampla. Simone Tebet pode se juntar à frente ou pelo menos indicar apoio crítico a Lula. Ciro e o seu partido, o PDT, convergiram para Lula, mais o partido do que o candidato derrotado. Mesmo que Ciro não faça esse movimento com convicção, por razões evidentes, boa parte, talvez a maior parte dos seus eleitores ficarão com Lula.
No geral, a campanha de Lula foi muito bem. Estando na liderança, não se espera que Lula faça movimentos bruscos e reformulações profundas na sua estratégia. Como se espera, já começou a movimentação na direção de Simone e Ciro, algo consistente com a frente ampla em defesa da democracia.
Pergunto, porém, será que Lula não deve recalibrar a campanha no segundo turno? A pergunta se deve ao seguinte. A frente superampla – a “Arca de Noé”, como disse o próprio candidato – é necessária não só para as eleições como para o governo, não há dúvida quanto a isso. Mas até aí morreu Neves.
Há de se reconhecer que os temas que empolgam a Arca de Noé não sensibilizam muito o povo, a ampla maioria do eleitorado. Defesa da democracia contra a extrema direita? Beleza. Civilização contra barbárie? Ótimo. Mas, convenhamos, o povo brasileiro vive na barbárie desde sempre e mal conhece essa tal de “civilização”.
Pouco ou nada entendo de povo, confesso. Mas não existe o risco de que Lula, acompanhado que está de figuras carimbadas do establishment nacional, acabe sendo visto pelo povo pobre e sofrido como mais um representante do “sistema” que nunca fez nada por ele? Ou será que memória do governo Lula é suficiente para afastar esse risco?
Difícil dizer. Em todo o caso, talvez seja recomendável retomar com mais clareza temas e propostas diretamente ligados aos interesses imediatos daquela grande maioria que está na emergência. Por exemplo, anunciar que Lula restabelecerá o Bolsa Família, aumentando o valor médio do benefício para, digamos, algo como R$ 800 ou R$ 1.000. Bem sei que Lula terá de manter o apoio dos setores mais conservadores da frente ampla, que não são fanáticos pela responsabilidade social. Mas de que adianta manter a frente ampla unida e perder a eleição? O aumento do benefício, por outro lado, estava no programa de Ciro e foi um dos pontos pedidos pelo PDT para dar “apoio programático” e ingressar na frente pró-Lula. O PDT pode ajudar a inclinar a Arca de Noé um pouco para o lado popular.
Reconheço que a campanha de Lula, se for realmente recalibrada, terá de ser bifronte. O reforço da parte relativa à responsabilidade social talvez possa ser acompanhado de um reforço do compromisso com a responsabilidade fiscal, anunciando-se por exemplo desde logo uma nova regra fiscal, mais inteligente do que o teto Temer, proporcionando uma indicação da estratégia para as contas públicas no médio prazo. Lula atenderia, assim, pelo menos em parte, o clamor dos setores de direita e centro-direita da Arca de Noé por definições mais precisas na área econômica.
Obviamente, a cada dia surgem fatos novos. Concluo este artigo, portanto, dizendo que ele foi finalizado no início da tarde do dia 4 de outubro do ano da graça de 2022.
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O autor é economista, foi vice-presidente do Novo Banco de Desenvolvimento, estabelecido pelos BRICS em Xangai, de 2015 a 2017, e diretor executivo no FMI pelo Brasil e mais dez países em Washington, de 2007 a 2015. Lançou no final de 2019, pela editora LeYa, o livro O Brasil não cabe no quintal de ninguém: bastidores da vida de um economista brasileiro no FMI e nos BRICS e outros textos sobre nacionalismo e nosso complexo de vira-lata. A segunda edição, atualizada e ampliada, começou a circular em março de 2021.