Sem escolha, trabalhadores mantêm rotina na epidemia de coronavírus

Atualizado em 17 de março de 2020 às 20:27

Publicado na Rede Brasil Atual

Trabalhadores informais, como camelôs e motoristas de Uber, vivem um dilema entre o risco de contaminação e a perda da renda familiar

Teresinha dos Santos tem 67 anos. Há 30, trabalha com seu marido, Francisco, de 69 anos, em feiras livres da zona norte da capital paulista. Vendem cebola, alho e temperos. A chegada da epidemia de coronavírus ao Brasil assustou a trabalhadora, mas ela é categórica: “Entre o risco de pegar a doença e passar necessidade, você acha que a gente pode escolher?”.

Essa é a situação de milhões de brasileiros que não podem deixar sua rotina de trabalho para atender à determinação dos governos de evitar contato social, sejam eles trabalhadores informais ou com carteira assinada.

A base da renda de Teresinha é tirada na feira. Como ela não produz os temperos, compra de terceiros para revender. Outra parte vem das aposentadorias de um salário mínimo, tanto dela como do marido.

“A gente toma remédio, tem que pagar água, luz, comer, vestir. Pode ser só nós dois, tem gente que acha que é muito, mas as coisas não estão fáceis. Se a gente deixar de vir quatro vezes, perdemos nosso ponto. A gente vai cuidando, usa luvas, mas é o que podemos fazer”, explicou a feirante, que não tem sequer como lavar as mãos constantemente no local.

A situação dos camelôs não é diferente. Adilson Araújo mantém ponto no Viaduto do Chá, na região central, justamente pelo movimento de pessoas. Mesmo assim, consegue de R$ 40 a R$ 60 por dia, o que exige que ele trabalhe de até 10 horas por dia, de segunda a sábado, para manter a família.

O pequeno com a avó

A mulher de Adilson, Andreia, trabalha como costureira e também não pode manter quarentena. “Ela ganha por produção, não pode parar nenhum dia, não. Tem esse vírus aí, mas as contas continuam chegando, tem aluguel, tem mercado. Se o governo não apoia a gente, não tem como ficar sem trabalhar”, diz Adilson.

Pais de um garoto de 6 anos, Adilson e Andreia novamente foram obrigados a passar por cima das recomendações dos órgãos de saúde. Com as aulas suspensas, o pequeno está ficando com a avó. “Se não fosse ela seria outra parente. Como que a gente vai pagar alguém? Mas a verdade é que antes de pararem as aulas, ele já ficava com a avó todos os dias, depois da escola. Porque a gente está trabalhando. A gente torce para não acontecer nada”, afirma o camelô.

Moradores da Penha, na zona leste, ambos seguem utilizando o transporte coletivo para ir ao trabalho. Ele no centro, ela no Brás. O dinheiro curto não permite a compra contínua de álcool gel. Adilson depende dos comércios da região central para lavar as mãos, já que seu trabalho é na rua. “Medo a gente tem. Mas se eu não for trabalhar, vou ter outros problemas. O governo não ajuda ninguém, só as empresas”, criticou o ambulante.

A situação é semelhante para trabalhadores de aplicativos, como Uber e Ifood, que dependem do trabalho diário para ter renda. Trabalhadores da área da cultura também estão pedindo que sejam mantidos os repasses de recursos de editais e a liberação de fundos para garantir a sobrevivência.

No Rio de Janeiro, um dos pedidos é que seja garantida desoneração dos impostos para os espaços culturais por um período determinado, até que as atividades possam ser retomadas.

Como não sair de casa?

A situação deles é um retrato do país que investiu na destruição dos direitos trabalhistas, o que não resolveu o problemas do alto desemprego. Atualmente, quase 12 milhões de pessoas estão desempregadas, e 41% dos trabalhadores ativos estão na informalidade, sem garantia trabalhista para enfrentar a epidemia de coronavírus. Um trabalhador com carteira assinada que contraia a doença tem direito a afastamento por até 14 dias, sem perda na renda. Se precisar de mais tempo, a seguridade social passa a garanti-lo. Os informais estão por conta própria.

Desde o início da contaminação comunitária – quando pessoas que não viajaram a locais de risco se contaminam entre si – a Sociedade Brasileira de Infectologia recomendou às pessoas que fiquem em casa e às empresas que adotem o trabalho remoto, quando possível, ou estabeleçam turno alternados para reduzir a aglomeração de pessoas. Mas a medida é voluntária e não foi seguida de qualquer política de apoio aos trabalhadores informais, seja no âmbito estadual ou no federal. Atualmente, existem 234 casos confirmados no país, a maioria em São Paulo.

As condições dos trabalhadores formais, no entanto, não são muito melhores. Sem obrigação de as empresas deixarem seus funcionários em trabalho remoto, quando possível, a maior parte das empresas segue funcionando normalmente. A operadora de caixa Viviane Costa e o marido dela, Jefferson Matos, trabalham com carteira assinada, mas não houve qualquer ação das empresas para reduzir o risco de contaminação. “A gente está trabalhando normalmente. Não mudou nada. Só falaram para a gente cuidar da higiene, mas muitas vezes eu fico horas sem poder sair do caixa”, afirmou. Jefferson teve a agenda de visitas mantida.

Coronavírus x trabalho

Para esses trabalhadores, o fantasma do desemprego é também um fator determinante para que a segurança contra o coronavírus fique em segundo plano. “Nossa filha está sem aula e está com a avó. Nossa rotina não foi alterada no trabalho e não podemos arriscar perder o emprego. Já estão falando que se o governo mandar ficar em casa, vai fechar o mercado (onde ela trabalha)”, diz Viviane.

Nesta semana, a rede Cinemark anunciou um programa de demissões voluntárias após os governos do Rio de Janeiro e de São Paulo determinarem o fechamento de cinemas por tempo indeterminado por conta da epidemia de coronavírus. Outras empresas ameaçam seguir o mesmo caminho e cobram ajuda dos governos.

Para o médico infectologista Marcos Caseiro, os empresários precisam ter consciência que é preciso parar. “Tem que parar tudo, não é só escola, universidades. O que precisaria fazer para conter a transmissão é parar geral. Isso parece ser uma ação muito radical, absurda, mas é a única medida que se mostrou eficaz em outros lugares do mundo.

O momento é de tentar uma alternativa para as pessoas fazerem suas atividades em casa, evitando ao máximo as aglomerações. Na impossibilidade total, se houver trabalhadores que a presença física é inevitável, que ele garanta total assepsia, com álcool gel para o indivíduo utilizar o dia inteiro, jamais um indivíduo sintomático ir trabalhar”, afirmou, em entrevista à Rádio Brasil Atual.

Apelo ao bom senso

Com base nessa necessidade contra a epidemia de coronavírus, as centrais sindicais brasileiras publicaram ontem (16) documento onde apresentam propostas para proteger os trabalhadores do coronavírus, garantindo emprego e renda, tanto para os formais quanto os informais. A principal é garantir que todas as pessoas tenham acesso à renda durante o período de crise, providenciando apoio pela seguridade social, o seguro-desemprego, a assistência social, o Bolsa Família, entre outros.

Além disso, as centrais defendem que, no período de redução da circulação, devem ser fomentadas jornadas de trabalho com horários de entrada e saída alternativos, que evitem circulação no transporte público em horários de pico, e estabelecer medidas temporárias como o home office. Também pedem que sejam consideradas faltas justificadas aquelas realizadas pelos trabalhadores que não tiverem com quem deixar os filhos de até 12 anos, por conta da suspensão das atividades escolares, o pagamento de auxílio creche no valor de um salário mínimo para contratação de um cuidador para as crianças e extensão das licenças-maternidade.

“Os trabalhadores informais/conta própria que sofrerem quebra de atividade durante a redução da circulação de pessoas ou no caso em que seja definido período de confinamento geral da população; ou, ainda, que necessitem se afastar do trabalho para os cuidados com as crianças em recesso escolar terão apoio financeiro através da Seguridade Social, com valores definidos conforme as regras do seguro desemprego, através dos mecanismos disponíveis na seguridade social. Para os informais sem contribuição previdenciária, deve-se implementar programas da seguridade, tais como o Benefício de Prestação Continuada, o Bolsa Família ou programas similares ao seguro-defeso”, defendem as centrais.