Publicado originalmente na Agência Pública
Por José Cícero
No cruzamento da Avenida Faria Lima com a Rua dos Pinheiros — região da capital paulista que concentra muitos bares e restaurantes —, um grupo de entregadores se encontrou no dia 18 de abril para questionar as condições de trabalho para o iFood, como atrasos no pagamento e bloqueios no aplicativo.
Entre eles, Antônio*, 28 anos, estava irritado porque aquele era o quarto dia que não conseguia fazer entregas. Segundo o trabalhador, a empresa havia combinado que os pagamentos seriam realizados semanalmente, às quartas-feiras, o que não estaria sendo cumprido. Ele reclamou da situação no grupo da empresa no Telegram — e foi excluído de lá, relata. O problema é que o grupo é justamente o meio pelo qual é gerenciada a atividade dos entregadores. Fora dele, Antônio não tinha como escolher o turno e ficou sem trabalhar.
A empresa no caso, não é o iFood, mas uma das dezenas de intermediárias classificadas como Operadoras Logísticas (OL) com as quais o aplicativo firma contratos para gerenciar sua rede de entregadores.
Em uma investigação exclusiva, a Agência Pública teve acesso a um contrato que prevê escala e turno de entregadores e até mesmo direitos trabalhistas que não estão sendo cumpridos. Antônio ou outros entregadores não têm conhecimento dessas regras. Para trabalhar para a Sis Moto e começar a atuar como OL, ele diz, foi necessário enviar apenas um documento com foto e “não foi pedido para assinar nada”, relata.
Segundo um contrato assinado em 2017, obtido pela reportagem, a OL Sis Motos se responsabilizou pelo registro em carteira profissional de trabalho de todos os entregadores, a obedecer às normas e regimentos internos de segurança do iFood, a garantir que todos estejam uniformizados com capa de chuva, GPS, smartphone com pacote de dados e, dentre outras coisas, a se responsabilizar por todas as despesas referentes a combustíveis, manutenção, licenciamento das motocicletas e seguro.
Em contrapartida, no documento, o iFood “se obriga” a enviar mensalmente para a Sis Motos a escala dos entregadores “por dia e turno para o mês subsequente, indicando o número mínimo e máximo de entregadores a serem disponibilizados” pela terceirizada, que oferece uma quantidade de entregadores para cumprirem a escala enviada mensalmente pelo iFood.
O acordo entre o aplicativo e a empresa prevê até mesmo consequências caso um entregador se ausente por qualquer motivo, mesmo que justificado: ele deverá ser substituído imediatamente ou ser trocado, em até 24h, caso o iFood solicite por escrito.
A reportagem questionou o iFood, que respondeu que 20% de mais de 200 mil entregadores cadastrados no aplicativo trabalham para operadores logísticos: o que equivale a 40 mil trabalhadores. Segundo a empresa, “o iFood não tem nenhuma ingerência ou gestão sobre a empresa que optou pela plataforma para prestar serviços de delivery. Estas empresas têm liberdade para conduzir seus negócios e são responsáveis por contratar os seus entregadores e por fazer toda a gestão sobre eles, em conformidade com as regras de Compliance e Código de Ética do iFood”. A resposta completa está aqui.
A Pública tentou contato com a Sis Motos por diversos meios, em dias diferentes — telefone, e-mail e redes sociais, para solicitar algumas informações, entre elas a quantidade de funcionários com registro em carteira. Até o fechamento da reportagem, não houve retorno.
Terceirizadas do iFood se comprometem a isentar aplicativo de processos na Justiça
Há dois anos, Antônio trabalha como entregador. Nesse período, atuou em diversos aplicativos, porém a relação do iFood com as OLs o incomoda. “O iFood, infelizmente, sempre foi o aplicativo que eu mais tive problemas, por conta dessa relação com o operador logístico. Já que o aplicativo preza pela autonomia, todos os entregadores teriam que poder desligar o seu aplicativo e ligar a hora que eles quiserem, todos terem chamadas iguais, independente se é OL ou Nuvem. Eu acho que, para começo de conversa, deveria ter mais transparência na relação iFood, OL e entregador. Você faz o cadastro no iFood, quem manda a corrida é o iFood e o que que essa empresa OL está fazendo no meio?”, questiona.
Segundo a Pública apurou, o acordo entre o iFood e a SIS Motos, além de prever escalas dos entregadores sem que eles saibam, teria a função de tentar blindar o aplicativo de problemas na Justiça. No contrato, a terceirizada se compromete a “excluir o iFood, de todo e qualquer processo, seja cível, criminal, trabalhista ou administrativo, a que tenha dado causa a qualquer de seus funcionários”.
Na prática, contudo, isto não tem isentado o app de ser alvo de ações trabalhistas nas quais juízes vêm reconhecendo o vínculo empregatício com os entregadores. No dia 14 de janeiro deste ano, o juiz da 4ª Vara do Trabalho de São Paulo, Maurício Pereira Simões, reconheceu o vínculo entre um entregador com a Sis Moto Entregas e o iFood. Em decisão, o magistrado condenou as empresas a registrarem a carteira de trabalho do entregador, pagar o 13° salário referente ao período que ele esteve vinculado à terceirizada, adicional de periculosidade e noturno, horas extras, indenização correspondente ao vale refeição e alimentação.
Para chegar à decisão, conforme consta no processo, os elementos que comprovaram o vínculo empregatício foram: “o trabalho era oneroso”, porque o entregador recebia por entrega realizada; “a subordinação era tanto direta quanto estrutural”, pois ele “seguia as ordens de entrega a 1 reclamada [Sis Motos] e do aplicativo, não tinha liberdade para decidir sua forma de trabalho”; a concordância entre a Sis Motos e o iFood em decidir “onde e quando” entregador iria atuar; o trabalho era com pessoalidade, ou seja, era apenas ele que “se encarregava pessoalmente das tarefas, sem possibilidade de fazer-se substituir” e por conta da frequência com que ele executava a atividade.
O juiz também levou em consideração o depoimento das testemunhas que trabalharam com o entregador. Ressaltou que ficou comprovado que “os senhores Kevin e Alexandre [líderes da OL em São Paulo] davam as ordens, bem como não poderiam recusar as chamadas, escalas via Telegram, punições aplicadas”.
O juiz destacou que a empresa iFood é “beneficiária final” dos serviços prestados pelo entregador, lucra com a atividade, obtém lucro com a intermediação, “se aproveita do trabalho prestado”, “retira seus lucros de cobranças e taxas a partir das tarefas executadas pelo reclamante [entregador] para os clientes da 1a reclamada [Sis Motos]. Ao se descortinar todas as fumaças que encobrem as relações o que sobra é o reclamante prestando serviços de entrega para a 1ª reclamada, mediante lucro do operador do aplicativo, a 2ª reclamada [iFood] “.
Conforme a decisão, se por algum motivo a Sis Motos não arcar com as obrigações e verbas, como também condenada, mas de maneira subsidiária, o iFood assume de imediato a responsabilidade e terá que arcar com os custos determinados. O App entrou com recurso para rever a decisão da justiça.
Justiça tem reconhecido vínculo empregatício entre entregadores, OLs e iFood
A Sis Motos é uma OL que atua em diversos estados do país. Em sua página no Facebook, há diversas publicações de novas praças de atuação. No início de maio, a empresa anunciou que chegou em Camocim, no Ceará. Outra praça foi inaugurada em Redenção, no Pará, e em Viçosa, em Minas Gerais. Arraial do Cabo, no Rio de Janeiro, Dias D’Ávila, na Bahia, e Carazinho, no Rio Grande Sul, são outros locais que a OL opera em parceria com o iFood.
Outros processos contra a Sis Motos e o iFood tramitam em Tribunais de Justiça do Trabalho de diversos estados, nos quais magistrados também têm reconhecido o vínculo empregatício dos entregadores com o aplicativo. Em dezembro de 2021, a juíza da 6ª vara do trabalho de Porto Velho (RO), Cândida Maria Ferreira Xavier, condenou a OL e, como subsidiário, o iFood, a pagarem para um entregador o 13° salário proporcional e integral em relação ao período reclamado, férias, horas extras, adicional noturno e de periculosidade.
Em outra decisão proferida em agosto de 2021, o juiz da 2ª Vara do Trabalho de Cuiabá (MT), Aguinaldo Locatelli, condenou a Sis Motos a pagar para um entregador horas extras, adicional noturno, férias, 13° salário, indenização por dano material, adicional de periculosidade, recolhimento do fundo de garantia e registro em carteira de trabalho. Na sentença, Locatelli rejeitou a responsabilidade subsidiária do iFood. Segundo análise do magistrado, a iFood “funciona simplesmente como uma intermediadora” que conecta o consumidor com os restaurantes e ligando o restaurante com o entregador”.
Não foi apenas no processo que envolve a Sis Moto e a iFood que o vínculo empregatício foi reconhecido. Em outra ação ajuizada por um entregador, a 1ª Turma do Tribunal Regional do Trabalho da 19ª Região (TRT/AL), em junho de 2021, também entendeu que houve relação entre a OL Telex Express com o entregador e, na decisão, a responsabilidade subsidiária do iFood também foi reconhecida.
Na sentença, o desembargador Pedro Inácio questionou o “trabalho autônomo” realizado pelo entregador. “O entregador de alimentos por plataformas tem essa liberdade? A resposta honesta e jurídica é não! Não é isso que se vê no caso dos autos, pois o reclamante não tinha qualquer autonomia para negociar preço, modo de fazer o serviço, escolha de clientes ou de opinar sobre qualquer tema do contrato. É forçoso reconhecer que, além das condições duríssimas de labor, trabalhava sem qualquer proteção social, sem margem para opinar até mesmo sobre a remuneração”.
Para Procurador Geral do Trabalho, relação entre iFood e OLs é “terceirização ilícita”
Para o procurador-geral do Trabalho, José de Lima Ramos Pereira, não há dúvida que a subordinação do entregador “é com a própria iFood”, que o operador logístico “apenas mascara uma relação de trabalho e emprego porque, no fundo, no fundo, é uma percepção falsa de autonomia”. Ele classificou a terceirização das operadoras logísticas pela iFood como ilegítima: “Essas OLs, para o nosso entendimento, é uma terceirização ilícita. É responsabilidade direta do iFood”, afirma.
Segundo Tadeu Henrique Lopes da Cunha, da Coordenadoria Nacional de Combate às Fraudes nas Relações de Trabalho (Conafret), um dos aspectos levados em consideração na relação entre as terceirizadas e o iFood é a falta de estrutura das empresas contratadas. Tadeu aponta que nas investigações de um inquérito civil de uma Ação Civil Pública ajuizada em 2019, “se constatou que as OLs não eram empresas que tinham autonomia operacional para realizar a atividade e também não eram empresas que tinham capacidade econômica compatível com a execução do contrato”.
Cunha enfatiza que as operadoras logísticas devem ter uma estrutura de meios de produção, de capacidade de organização, que faça com que ela consiga realizar tudo de modo a entregar a prestação de serviço com o cumprimento de toda a legislação trabalhista: “pagando salários corretamente, pagando garantias, comprindo as normas de trabalho e ainda tendo o seu custo operacional, tendo capacidade econômica fazendo frente a tudo isso. Aspectos que a gente não constatou, por exemplo, no caso das OLs da iFood”.
Para o vice-coordenador da Conafret, Renan Bernardi Kalil, há contradição entre a forma como a empresa se apresenta. “A iFood não diz que é uma empresa de entregas, ela diz que é uma empresa de tecnologia e por isso ela não tem nenhuma responsabilidade em relação aos entregadores, porque ele atuaria por meio da tecnologia que ela oferece, ela estaria somente realizando essa ligação. Esse contato entre o entregador e o cliente da iFood. Porém, veja, se a iFood é realmente uma empresa somente de tecnologia e não tem nada a ver com a realização da atividade da entrega, por qual razão ela procura empresas terceirizadas que oferecem esse serviço de entrega? Não faz nem sentido do ponto de vista discursivo que a empresa se apresenta perante a sociedade nos processo judiciais”, aponta Kalil.
Segundo posicionamento enviado pelo iFood à reportagem, a empresa “mantém um processo de análise das empresas, que inclui dados cadastrais e situação na receita federal, dados financeiros, processos trabalhistas, regularidade de certidões, infrações trabalhistas, entre outros. Também são realizadas pesquisas periódicas para avaliação dos OLs, além de possuir um guia de boas práticas e canal de denúncia, divulgado aos entregadores e parceiros.”
MPT classifica terceirizadas como “disfarce elegante” da iFood para direitos trabalhistas
Em 2019, o Ministério Público do Trabalho de São Paulo formulou uma Ação Civil Pública contra a iFood e a Rapiddo, empresas do mesmo grupo econômico, apontando a ocorrência de fraudes a normas trabalhistas, sonegando a relação de emprego mantida com os entregadores. Na Ação Civil Pública, assinada por sete procuradores do trabalho, afirma-se que não há autonomia na relação do aplicativo com o entregador.
“Após exaustiva análise técnica e jurídica sobre os “serviços” oferecidos pela Rapiddo e iFood, resta irrefutável que o trabalho desenvolvido pelos condutores, através de suas plataformas tecnológicas, não proporciona a tão sonhada emancipação do trabalhador, conferindo-lhe liberdade e autonomia para exercer suas atividades profissionais. Ao contrário, transforma os condutores profissionais em seres autômatos, verdadeiras marionetes de um sistema de software empresarial que controla e direciona diuturnamente, passo a passo, seu labor. As tais empresas especializadas ou operadores logísticos nada mais são que intermediários cirurgicamente escolhidos para mascarar e obstaculizar, ainda mais, a relação de emprego latente”.
Na ação, os operadores logísticos são classificados pelo MPT como “um disfarce elegante para os condutores profissionais”. E que “a verdade dos fatos demonstra que não se trata de empresas reais, senão peças de ficção, forjadas para permitir o cadastramento de motoristas profissionais através de um intermediário, com o escopo de obnubilar a relação de emprego evidente entre a iFood e seus entregadores”.
Em janeiro de 2020, a juíza da 37ª Vara do Trabalho de São Paulo, Hirley Aparecida de Souza Lobo Escobar, julgou improcedentes os pedidos constantes na ação. O valor da causa era de R$ 24 milhões. O MPT recorreu da decisão.