PRIMEIRO ATO
Noite de 22 de novembro de 2017. O cineasta e diretor de TV Aaron Salles Torres estava em um bar no Leblon, na avenida Ataulfo de Paiva, coração do bairro. No bar ao lado, a Void, uma mulher passou a ser agredida por alguém que parecia ser seu namorado. Ela estava apanhando e correu para um táxi. O agressor foi atrás, forçou sua entrada no carro.
Aaron resolveu intervir, foi para a rua, não deixou o táxi seguir, abriu a porta do veículo e começou a brigar com o agressor, soco na cara e tudo. A mulher aproveitou para sair correndo. Enquanto isso, separaram a briga. O agressor também saiu dali.
O cineasta, então, ligou para a polícia. Em pouco tempo, chegaram dois policiais civis, em uma viatura da delegacia do Leblon, 14º DP. Aaron narra a sequência:
Mas os dois policiais ficaram parados olhando para minha cara. Eu os gravei no meu celular, fiz que postei no Instagram, dizendo aos meus seguidores que se algo acontecesse naquele caso de violência contra a mulher, que a culpa era da Polícia do Leblon.
E voltei para minha mesa, mas não postei.
Aaron ainda não sabia, mas tinha ali início sua relação com as forças policiais do Rio de Janeiro. Uma relação que se estende até hoje, que o fez sofrer ameaças de morte, ser sequestrado por policiais, tomar chute no chão e pancada com extintor de incêndio na cabeça desferida por policiais, ser sequestrado por policiais, fugir do Rio de Janeiro e, finalmente, ser preso sem ordem de prisão e responder por dois anos a um inquérito fraudulento que rendeu ataque massivo a reputação por meio de órgãos de imprensa, prisão ilegal e humilhação policial durante uma investigação que foi prontamente arquivada por absoluta inconsistência pelo Ministério Público assim que recebida da polícia.
Mas tudo a seu tempo.
De volta a novembro de 2017 e ao Leblon, depois de conversar com os policiais, Aaron voltou à mesa do bar onde estava, com o então namorado e alguns amigos, comemorando o lançamento de seu longa-metragem “Quando o Galo Cantar Pela Terceira Vez Renegarás Tua
Mãe”. Em dado momento, o companheiro pediu que o cineasta lhe emprestasse o celular.
Eu entreguei. Ele saiu de perto de mim e voltou dizendo que tinha apagado o vídeo. Eu não gostei, me senti invadido, reclamei com ele. Foi então que um outro amigo me disse: “Ele apagou porque os policiais mandaram, ameaçaram ele e você de morte se não deletassem o vídeo.”
Eu continuei bravo, comecei a andar para casa (morava a dois quarteirões dali). No meio do caminho, disquei 190 e denunciei a ameaça de morte. Disse que esperaria na rua os policiais para tomar meu depoimento e apurar o caso. A Polícia do Leblon mandou os mesmos dois policiais da ocorrência inicial.
Eu falei: “Que bom! Vocês fizeram meu namorado deletar o outro vídeo. Agora vou gravar e vou postar.” Gravei, contei a história toda e postei imediatamente.
Então, um dos policiais, que se identificou como inspetor, ordenou que Aaron os acompanhasse até o distrito. O cineasta perguntou o motivo da ordem. Ouviu que era porque tinha acusado os policiais do crime de ameaça. Não se intimidou, sacou do celular, gravou e postou um novo vídeo em suas redes, mostrando o rosto do inspetor e dizendo que se algo acontecesse com ele, ali estariam os responsáveis. Segue narrando Aaron:
Daí, liguei para o meu pai, que foi Conselheiro Federal da OAB e estava no Rio. Ele falou: “Aaron, não entre nesse camburão (do inspetor) ou vc vai amanhecer morto em um matagal. Pegue um Uber e eles te seguem até a delegacia”.
Fiz isso. Quando cheguei à delegacia, meu pai já estava lá. Um policial disse a ele: “Meu chefe, o inspetor, é da milícia. Ele me ameaça de morte todos os dias aqui dentro da Delegacia do Leblon. Se esse vídeo vazar, eu vou morrer. Então, mato o seu filho primeiro”. Meu pai me pediu para deletar o vídeo, eu apaguei, mas meus seguidores já haviam regravado, a meu pedido (inclusive com a cara do inspetor).
Então, o próprio inspetor veio (ainda dentro da Delegacia do Leblon) e disse que sabia onde eu morava e que me mataria. E que sabia onde meu pai morava também, em Mato Grosso do Sul, ameaçando-o também.
Então, com o vídeo aparentemente deletado, nós voltamos para meu apartamento com o raiar do dia. Nunca poderia imaginar que, ao chamar a polícia para defender uma mulher que estava sofrendo agressão, eu acabasse ameaçado de morte pela polícia do Leblon.
Ao raiar do dia, Aaron chegou em casa sem que um boletim de ocorrência com a denúncia de ameaça tivesse sido lavrado. Os policiais do Leblon se recusaram a fazê-lo.
SEGUNDO ATO
Abril de 2018, tinha se passado cinco meses do episódio na noite do Leblon, um mês do assassinato de Marielle Franco. O Brasil vivia o ano eleitoral que culminou na eleição de Jair Bolsonaro.
Como sempre fez, desde antes da noite no Leblon, Aaron passou este intervalo de tempo sem mudar sua postura e seu discurso. Em suas redes sociais, não parou de falar o que pensa, sobre violência policial, sobre a morte de Marielle, sobre os motivos que ele achava que estavam por trás do assassinato da vereadora.
No dia 5 de abril, recebeu um telefonema, que foi sucedido por outros de mesmo teor, e também por mensagens em suas redes, com ameaças de morte. Ele passou a gravar as conversas.
Me falavam que se eu pisasse os pés na rua, iria ser espancado até a morte por policiais, ou levaria uma bala perdida. Uma mulher que eu conhecia me ligou dizendo que o pai era miliciano, da Barra da Tijuca, e que iriam me matar. Eu fiquei três dias sem sair de casa.
Passados três dias, Aaron decidiu que bastava. Postou no Instagram tudo que tinha gravado. Narrou as ameaças, lembrou o recente assassinato de Marielle, disse que não se calaria. As ameaças cessaram naquele momento, mas não o ativismo de Aaron.
Já em outubro – as eleições presidenciais prestes a ocorrer -, Aaron seguia como se não fosse alvo de ameaças, atuando politicamente em suas redes:
Sempre fui antibolsonarista. Continuei expressando isso, me manifestando contra o discurso do ódio. Fui bastante ativo na tentativa de explicar como se constroem as teorias da conspiração, apontando as origens desse discurso do medo e do ódio no fascismo do século passado, apontando os traços fascistas no discurso e nos atos do (então candidato a presidente) Jair Bolsonaro.
As ameaças voltaram a se intensificar, “como você defende um ladrão?, o futuro do país está em jogo, vamos te matar”. Em janeiro de 2019, assim como o então deputado federal reeleito Jean Wyllys, Aaron decidiu sair do país:
Bolsonaro tinha sido eleito presidente. As ameaças só aumentavam. As investigações sobre a morte de Marielle apontavam a participação das milícias policiais no assassinato. Eu decidi que não queria ser a próxima vítima. Eu saí do Brasil.
O cineasta foi para Chicago, nos Estados Unidos, onde tem um apartamento. De lá, meses depois, rumou para a França, para acompanhar o Festival de Cinema de Cannes, a trabalho, já em maio de 2019.
Daí, tomou a decisão de enfrentar o problema e de retornar para o Brasil, mas decidiu se mudar do Rio de Janeiro; foi morar em São
Paulo:
Joguei todas minhas coisas no caminhão de mudança e fui para São Paulo, dirigindo com meus gatos, minhas plantas e os olhos cheios de lágrimas. Chorava copiosamente o caminho inteiro.
Na cidade, passou a trabalhar como diretor de uma série do Canal Brasil. Naquele ponto, achou que sua relação involuntária com a Polícia Civil do Leblon tinha acabado. Mas não tinha.
TERCEIRO ATO
Aaron tem família em Mato Grosso do Sul. Em dezembro de 2019, o cineasta brigou com seu então namorado, pegou um avião em São Paulo e foi encontrar seus pais no Centro-Oeste do país, para passar o Ano Novo. De lá, no dia 2 de janeiro de 2020, voou de volta à capital paulista. No dia 3, pela primeira vez desde que fugira das ameaças um ano antes, pegou um avião e pousou no Rio de Janeiro, foi encontrar onde marcou de encontrar o namorado, tentar fazer as pazes. Aaron possui os comprovantes de compra de passagem e de embarque dessas duas viagens.
O cineasta se hospedou em um hotel junto com seu companheiro de então. O pagamento do quarto se deu por meio de transferência bancária, cartão de crédito e dinheiro em espécie.
No dia seguinte, 4 de janeiro, sem sucesso na reconciliação, ele deixou o hotel, chamou um carro por aplicativo. Mal a viagem começou e Aaron notou que estava sendo perseguido, não que tivessem tentando esconder:
O carro em que eu estava foi fechado por outros dois veículos em um semáforo na avenida Vieira Souto, chegando ao Leblon. Um deles era um Fiat Doblô prata. Abri a porta, saí andando e peguei outro táxi. Mas a perseguição continuou. Resolvi parar em um lugar público, em um bar, onde a Doblô prata apareceu de novo. Tirei a foto da placa e enviei para uma amiga: ela verificou que era fria.
Quando eu estava no bar, um homem veio tirando uma arma e apontando na minha direção, a dois metros de distância. Corri. Entrei em um prédio. A porteira me deixou ficar ali até amanhecer.
Na portaria do prédio que o recebeu, ele passou algumas horas. Quando já amanhecia, ligou para a polícia, relatando o ocorrido. Relutou em ligar porque poderia estar chamando para salvá-lo exatamente aqueles que o perseguiram, mas precisava sair dali. Assim que ouviu de quem o atendeu que uma viatura estava a caminho, saiu do prédio em que estava de favor, informou que iria esperar a chegada dos policiais em um café ali do lado.
Assim o fez. Preferiu esperar trancado no banheiro, ainda recordando da arma apontada para sua cara algumas horas antes.
A polícia chegou no café, Aaron estava em uma das cabines do sanitário, trancado. Os policiais entraram no banheiro, não se identificaram, passaram a falar com o cineasta pela porta trancada:
Eles chegaram tirando onda e não se apresentaram como policiais. Eu tinha informado que minha vida corria risco e que sofria uma tentativa de sequestro, policiais não chegariam fazendo piada e gargalhando sobre o assunto. Eu não acreditei na seriedade deles, não havia o mínimo profissionalismo. Não abri a porta.
Então, os policiais arrombaram a porta, e deu-se início a um festival de agressões, com testemunhas. Aaron tomou socos e chutes da polícia enquanto estava de pé, e continuou apanhando quando já estava caído no chão. Também recebeu golpes de martelo e com um extintor de incêndio na cabeça, ao som de xingamentos e risadas. Por fim, soltaram uma bomba de gás lacrimogêneo no local, sem maiores ou quaisquer explicações.
Após o espancamento, Aaron foi conduzido a uma viatura policial, e só então acreditou que aqueles que entraram no banheiro eram de fato policiais.
No carro, ouviu os agentes públicos conversando no rádio. Ouviu os agentes cogitando a hipótese de levá-lo à favela da Rocinha. Ouviu falar em resolver o caso levando o cineasta ao microondas, como é chamada a execução de alguém por meio do fogo no corpo da vítima, presa em uma pilha de pneus de borracha:
Eles tomaram meu celular, me jogaram na viatura como e não me deram voz de prisão. Nada. Me levaram para a delegacia. Depois de um tempo, um policial veio e devolveu meu celular. Disse que desistiram de me levar para a Rocinha e para o microondas porque viram no meu celular que havia muitas mensagens de gente conhecida, que trabalha com cinema e TV.
Depois disso, mandaram que Aaron sumisse dali. Não lavraram boletim de ocorrência sobre a perseguição da Doblô Prata, muito menos sobre a surra que levara dos homens da lei do Leblon. Mas, pelo menos, ele estava livre e com vida. Tratou de voltar para São Paulo o mais rápido possível. Não voltaria ao Rio tão cedo.
QUARTO ATO
O trabalho de Aaron com o Canal Brasil em São Paulo teve continuidade, sua carreira de diretor de cinema e TV seguiu sem maiores danos. O mesmo não se pode dizer de sua saúde mental. O cineasta desenvolveu transtorno do estresse pós-traumático, enfrentado com terapia e medicamentos. Ficou quase um ano sem pisar no Rio de Janeiro.
Em dezembro de 2020, Aaron recebeu um convite do canal MTV dos Estados Unidos para dirigir um videoclipe. A oportunidade profissional era excelente. O problema era a cidade onde seriam realizadas as filmagens: o Rio de Janeiro.
Fiquei bastante reticente. Da última vez que tinha estado lá, tinha sido sequestrado e torturado, estava tratando síndrome do pânico que passei a ter depois daquilo tudo. Mas decidi que não iria limitar minha carreira. Aceitei a proposta, peguei um avião e fui pro Rio. Era o dia 5 de dezembro (2020).
O que se vai narrar a partir de agora já foi narrado publicamente, por órgãos de imprensa do país inteiro, seja por meio de redação própria de seus repórteres, seja por repetição de conteúdo produzido por agências de notícias, em especial pela Folhapress, da Folha de S.Paulo.
Conforme muito se noticiou à época, no dia 9 de dezembro de 2020, Aaron Salles Torres foi levado pela Polícia Civil do Rio de Janeiro, por
policiais da 13ª DP, de Copacabana, e da 14ª DP, do Leblon. De acordo com as autoridades, foi uma prisão em flagrante pelos crimes de estelionato e organização criminosa. Segundo a polícia, Aaron e seu então namorado, que estavam hospedados em um hotel da rede Accor, estavariam há um ano se hospedando em hotéis da capital fluminense e pagando as contas com cartões de crédito clonados.
A prisão em flagrante teria se dado após cuidadosa investigação policial e acompanhamento dos passos e dos supostos crimes do casal, que estariam desde o Réveillon de 2020 aplicando golpes desse tipo em hotéis da cidade. Ou seja, a polícia disse que Aaron tinha passado o ano aplicando golpes em hotéis cariocas.
O cineasta já entregou cópia à Justiça – e até hoje guarda consigo os originais – dos comprovantes de compra de passagem e embarque de sua viagem de São Paulo ao Rio de Janeiro, realizada três dias antes de sua prisão. Também coleciona provas de que estava em São Paulo em todas as datas em que era acusado de estar cometendo crimes no Rio.
A captura de Aaron se deu na noite do dia 9 de dezembro de 2020. Na manhã do dia 11, exatamente às 9h13min, a jornalista Paolla Serra, da revista Época, foi a primeira a dar a notícia, menos de 48 horas após o ocorrido. O texto na íntegra pode ser lido aqui.
Paolla Serra teve tempo de conversar com a delegada responsável pelo caso. Também foi capaz de ler e apreender todas as informações constantes no inquérito e na suposta investigação cuidadosa da polícia sobre a atuação da organização criminosa por cerca de um ano no Rio de Janeiro. Só não teve tempo de ouvir os acusados ou seus representantes legais. Publicou seu texto com a versão da polícia e só.
A jornalista foi além, adiantou-se à polícia e à Justiça. Enquanto o inquérito policial era conduzido, enquanto os acusados pela polícia do Leblon não tinham sido sequer ouvidos formalmente na delegacia, enquanto a delegada responsável pelo caso não tinha sequer chegado perto de enviar seu relatório final ao Ministério Público, que portanto não tinha ainda qualquer base para ofertar uma denúncia à Justiça, que assim não tinha ainda sequer começado o julgamento para saber se Aaron e seu namorado eram culpados ou inocentes, Paolla Serra já não tinha dúvidas, e (des)informou a seus leitores, em letras graúdas formando um título que não deixava margem para dúvidas: “Casal é preso no Rio após pagar hotéis cinco estrelas com cartões clonados”.
No texto da repórter da revista Época (que pertence às Organizações Globo), não consta a informação que Aaron havia trabalhado por sete anos dirigindo programas em canais a cabo da empresa dos Marinho (Multishow, onde dirigiu o programa “Vai que Cola”, e Canal Brasil). Assim ela inicia sua narrativa:
A Polícia Civil do Rio investiga um grupo de criminosos que, usando cartões clonados, desfrutam da estadia de hotéis cinco estrelas na cidade. Um casal gay foi preso acusado de aplicar o golpe em pelo menos dois estabelecimentos de alto luxo em Copacabana, na Zona Sul, e em Santa Teresa, na Região Central.
Quer dizer: um processo judicial ainda estava longe de ser instaurado, mas Paolla Serra já chamava os acusados (“um casal gay”) de criminosos.
Mais adiante, a repórter afirma que “a dupla montava cartões digitais com dados de terceiros e pagava as tarifas pela internet.” Logo em seguida, ela conta que os acusados “irão responder por estelionato e organização criminosa, e que “outros membros da quadrilha continuam sendo investigados.”
O crime de organização criminosa é descrito na lei como uma associação voltada para o crime composta por três ou mais participantes. O fato de a polícia só apresentar dois nomes de suspeitos para um crime que necessita de três pessoas ou mais para ser consumado não chamou a atenção da jornalista.
A partir da reportagem da revista Época, o que se viu foi um efeito de manada. O colunista Daniel Castro, do UOL e da Folha de S.Paulo, foi um dos primeiros a reproduzir a versão da polícia e da sua colega da Globo, “informando” ser fato o que uma investigação incipiente estava começando a tentar provar. Em seu título, o experiente articulista cravou: Aaron e seu namorado aplicavam golpes em hotéis de luxo, usando cartões de crédito clonados.
Logo em seguida, ainda no dia 11 de dezembro de 2020, a agência Folhapress distribuiu aos seus clientes (veículos de comunicação de todo o país), a sua (da polícia) versão dos fatos. Em um intervalo de três dias, Aaron foi de cineasta internacional de carreira irretocável a gay estelionatário e membro de organização criminosa.
Enquanto o assassinato de reputação se dava por meio da imprensa nacional, Aaron estava nas mãos da polícia. Quando foi abordado por policiais no hotel Accor no dia 9, ouviu dos homens da lei que aquilo não era uma prisão, muito embora ele não tivesse escolha, seria conduzido compulsoriamente a uma delegacia, “para servir de testemunha” de fatos sob investigação.
Muito embora não fosse uma prisão (de acordo com os policiais), Aaron teve seus documentos e telefone celular apreendidos assim que foi posto na viatura. Ou seja: foi preso sem voz de prisão e subtraído de seu telefone sem mandado de apreensão. Já na delegacia, foi interrogado por sete horas ininterruptas, sem presença de advogado. Um depoimento feito assim não possui qualquer valor legal, é antes um interrogatório ditatorial sem qualquer serventia jurídica. Por isso mesmo, a sessão de sete horas de perguntas a que foi submetido o cineasta não gerou uma linha sequer de depoimento lavrado, transcrito e assinado.
Após a maratona interrogatória ilegal, Aaron foi levado da delegacia para um presídio na zona Sul do Rio. Algemado, foi exibido a repórteres que o aguardavam na saída do distrito. O trajeto foi seguido por uma equipe da TV Record News, que deu ampla cobertura ao caso do “casal gay que aplicava golpes em hotéis cinco estrelas”.
No presídio, os agentes que me levaram para a cela ficaram a todo tempo dizendo aos demais detentos que eu era “viadinho”, debochando e sugerindo que deveriam me dar o “tratamento devido” (estupro). Por sorte, os que ali estavam presos tinham mais honra e humanidade do que aqueles que estavam me prendendo. Fui tratado com respeito e cordialidade o tempo todo que passei ali.
O tempo todo foram duas noites. No dia 11 de dezembro de 2020, o advogado do cineasta finalmente conseguiu contato com seu cliente, para alívio dos familiares e amigos de Aaron, que foram informados sobre o paradeiro do acusado. Até então, ninguém sabia se ele estava bem, se estava vivo, se estava morto.
O advogado e seu cliente, então, foram à audiência de custódia, conforme apregoa o Código de Processo Penal brasileiro. Por entender desnecessária e carente de provas, a prisão em flagrante foi imediatamente relaxada pela juíza que analisou o caso. Aaron Salles Torres foi para casa, aguardar em liberdade enquanto a polícia concluía as investigações para o oferecimento de uma denúncia formal.
ÚLTIMO ATO
O inquérito policial durou mais de um ano, excedendo em mais de dez meses seu prazo regulamentar. Os policiais pediram sucessivas extensões de prazo antes de se conformarem em entregar ao Ministério Público um relatório final que não chegou nem perto de apresentar qualquer prova de que Aaron tivesse praticado estelionato. Já o crime de organização criminosa, de que Aaron também havia sido acusado, pela polícia e pela imprensa, sequer foi incluído no relatório enviado ao MP-RJ. É que os policiais não conseguiram apresentar nenhum outro nome além dos de Aaron e seu namorado como suspeitos de compor uma quadrilha. Assim, era impossível acusá-los de compor uma organização criminosa.
O Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro se debruçou sobre o trabalho da polícia. Após sete dias de análise, resolveu arquivar o feito sem oferta de denúncia à Justiça. O motivo: não encontraram “um só resquício de prova” da participação de Aaron em qualquer tipo de ação estelionatária. Pelo contrário: os advogados do acusado é que provaram, por meio de documentos e provas periciais, que o cineasta sequer estava na cidade do Rio de Janeiro em inúmeras das datas informadas pelos policiais, sendo impossível, portanto, que estivesse gozando de hotéis de luxo sem pagar na capital fluminense.
E assim, no dia 23 de maio deste ano, o processo foi definitivamente arquivado, e Aaron Salles Torres considerado inocente em todas as acusações que lhe fez a polícia.
A repórter Paolla Serra, a revista Época e o jornal Folha de S.Paulo não concederam direito de resposta até agora ao acusado. Desde o arquivamento do processo, Aaron Salles Torres luta na Justiça com cada um dos veículos (dezenas) que mancharam sua reputação. Ele quer publiquem o resultado do processo, que corrijam a desinformação que publicaram, que informem que ele não é bandido.
Muitos outros meios de comunicação do país, por outro lado, atenderam ao pedido de correção do cineasta sem qualquer discussão, baseados em suas diretrizes éticas e bom jornalismo. Outros foram condenados pela Justiça a fazer o que deveriam fazer por conta e consciência própria.
Daniel Castro, por exemplo, corrigiu a informação errada de que Aaron era estelionatário. O jornalista do Grupo Folha publicou um texto no dia 16 do mês passado, enumerando todas as provas da inocência de Aaron. Ao final da reportagem, um aviso aos leitores: “Este texto é um direito de resposta ao texto ‘Ex-diretor do Multishow é preso por aplicar golpes em hotéis de luxo’”.
PRESENTE E FUTURO
Aaron Salles Torres, agora, quer tocar sua vida e sua carreira com trabalho e honestidade, como, de resto, foi tudo que sempre quis, apesar da polícia do Rio.
Quer que as torturas e a perseguição de que foi vítima fiquem no passado, mas não que sejam apagadas. O cineasta acompanha as notícias do país, sabe que seu caso não é isolado, sabe que os policiais que atacaram são apenas uma manifestação de uma violência política e policial que tomou conta do país nos últimos anos. Ele sabe quem é o responsável por isso:
Bolsonaro lançou uma frase propositalmente dúbia e vaga. Ele disse: “sabemos o que temos que fazer”. Pensei em um primeiro momento que estava se referindo a um golpe após a eleição e vitória do Lula. Hoje eu compreendo que Bolsonaro está usando desses termos aparentemente vagos para sugerir que seus apoiadores matem Lula. É uma mensagem de morte. Os grupos bolsonaristas e certa ingenuidade [ou má intenção?] de alguns grupos de mídia funcionam para traduzir essa mensagem aos autores físicos que interessam. Já foram dois atentados a bomba em atos do Lula em uma semana. Atentados a bomba são a marca registrada de Bolsonaro desde 1987.