Peter Pál Pelbart
Sou judeu, húngaro, amante da filosofia, dos loucos, dos indígenas, simpatizante doas zapatistas, das feministas, dos movimentos sociais e suas ocupações, dos dissidentes de toda ordem, e ferrenhamente antifascista. Por sorte não vivo na Hungria nem em Israel, embora já tenha obtido – e renunciado – ao passaporte de ambos, países cuja escalada xenófoba e fundamentalista (cristã ou judaica) é para mim motivo de madrugadas de perturbação e insônia – assim como a recente virada política no Brasil é motivo de cotidiano alívio e regozijo.
Nada me parece mais abjeto do que o fascismo, em suas formas diversas, históricas ou atuais. No passado, dele foram vítimas judias e judeus, ciganas e ciganos, homossexuais, esquerdistas, loucas e loucos, artistas, cientistas, intelectuais, desviantes. Pensávamos, nós do campo da esquerda, que era um capítulo já sepultado de nossa história, e qual não foi nossa surpresa ao vê-lo reaparecer sob novas formas em pleno século XXI.
Houve um tempo em que ser judia ou judeu era, em parte, uma condição existencial minoritária. Ao lado das perseguições, pipocavam os sonhos revolucionários. Diante da violência seletiva, a salvação do mundo. Pertencer à comunidade significava ir além da comunidade, abarcar o mundo. Algum messianismo transparecia em utopias nada religiosas. Mesmo quando não era este o caso, uma imensa generosidade ética caracterizava essa constelação: Espinosa, Marx, Freud, Rosa Luxemburgo, Kafka, Benjamin, Hannah Arendt, Paul Celan, Gertrude Stein, Lévi-Strauss, e mais recentemente Judith Butler e tantos outros.
É célebre a imagem do judeu errante. A conotação dessa figura é majoritariamente negativa. Para o antissemita, o judeu errante é o eterno estrangeiro, infiltrado, parasita, traidor, cujo objetivo é corromper a cultura e degenerar a raça. Sempre é suspeito de um complô, ora como agente do comunismo internacional, ora maquinando os destinos do mundo, já que é parte da plutocracia financeira.
Onipresente e insidioso, o judeu representa o perigo maior para a civilização ocidental, desde os Protocolos dos Sábios de Sião até Mein Kampf. No polo oposto está a imagem do judeu como um nômade, que não carece de uma terra, já que faz do deslocamento incessante sua própria morada. Por definição, ele vive nas margens do Império, no deserto, na dispersão, no exílio, exposto a todos os ventos e acontecimentos. Alheio ao Estado e seus poderes, é um trânsfuga, subverte os códigos, embaralha as pertinências, traça uma linha transversal ou de fuga. Daí a ideia de um “pensamento nômade”, como o designou Giles Deleuze, que transpõe fronteiras, que faz do movimento seu território existencial – Nietzsche ou Kafka seriam disso exemplos expressivos.
Nesse último sentido, uma definição possível de judeu seria: aquele capaz de devir-outra-coisa-que-não-judeu. Não é Zelig, de Woody Allen, que apenas imita. Nem o judeu não-judeu, de Isaac Deutscher, com sua vida dupla. Trata-se de algo mais sutil: certa potência de metamorfose, de reinvenção de si na vizinhança com a alteridade. No estupendo Nossa Música, de Jean-Luc Godard, uma jornalista israelense entrevista o poeta palestino Darwish, que, privado de sua terra, fez das palavras a sua pátria. E ela comenta: “você começa a soar como judeu!” O devir-judeu do palestino, o devir-palestino do judeu.
Mas voltemos ao Brasil. Sabemos que nossa história foi marcada pela presença judaica desde o seu início, com os cristãos novos e todo o jogo de esconde-esconde frente às perseguições da Inquisição. Curiosamente, a primeira sinagoga das Américas foi construída no Recife durante a ocupação holandesa (1630-1654), por iniciativa dos judeus sefaraditas de origem portuguesa refugiados nos Países Baixos. Quem fuçar um pouco acaba encontrando um tataravô descendente de algum criptojudeu.
Mas é no século XX que se forma uma grande comunidade judaica, com as levas maciças de imigrantes do Leste europeu fugidos dos pogroms primeiro, do nazismo depois. No geral encontraram aqui acolhida favorável. Afora o alinhamento passageiro do Estado Novo com os países do Eixo, e a consequente subordinação relativa a alguns ditames discriminatórios, como a restrição temporária à imigração judaica e a infame deportação de Olga Benário, não se tem registro de um antissemitismo sistemático por parte do Estado ou da população em geral – salvo aquele cultivado pelo integralismo – diferentemente do caso argentino.
O fato é que a comunidade judaica gozou no Brasil, em geral, de oportunidades econômicas, sociais, acadêmicas, culturais extraordinárias – além da absoluta liberdade de culto, associativa, comunitária. Um judeu não pode se queixar de um país que lhe franqueou tanto. Mas a história prega peças. Tome-se o exemplo do bairro do Bom Retiro, em São Paulo. Já foi o centro da vida judaica brasileira, ou ao menos paulista: sinagogas, centros culturais, entidades assistenciais, comércio ambulante, centralidade da confecção, filhos na universidade, escolas com visão aberta (Scholem Aleichem), movimentos juvenis ligados a correntes diversas de pensamento, ora mais comunistas, ora mais sionistas, ora mais tradicionais. Além disso, era ativo o Teatro de Arte Israelita Brasileiro (Taib), a imprensa em ídish, o Instituto Cultural Israelita Brasileiro (Icib – atual Casa do Povo), sem falar da Ezra, da Ofidas, da Policlínica, da Cooperativa de Crédito do Bom Retiro, da Chevra Kadisha, e das entidades em outros bairros, como o Lar dos Velhos, a Federação Israelita, a Confederação Israelita do Brasil.
Com a ascensão social de seus membros, a maioria da comunidade se deslocou para Higienópolis, Jardins ou arredores. A nova geração, majoritariamente composta de profissionais liberais, médicos, engenheiros, professores, psicólogos, jornalistas, editores, ou pessoas ligadas aos ramos do comércio ou das finanças, quando não empresários ou banqueiros, deixou de viver a vida de shteitl que ainda vigorava no Bom Retiro. Ainda assim, foram preservadas as redes de apoio, como o Lar das Crianças, fundado pelos judeus alemães, ou a Unibes, desde muito dedicada à assistência a pessoas em estado de vulnerabilidade, ou os clubes (Hebraica, Macabi).
No entanto, afora alguns núcleos mais religiosos, com suas sinagogas por vezes escandalosamente ostensivas e protegidas por muralhas fortificadas ou rodeadas de seguranças, no geral os laços comunitários tenderam a se afrouxar. Em contrapartida se fortaleceu a identificação com o Estado judeu. Entende-se tal atitude vinda dos sobreviventes da Shoá espalhados pelo mundo no imediato pós-guerra, que ansiavam por uma referência protetora.
Mas com o paulatino aburguesamento da comunidade podemos arriscar a hipótese de que o Estado de Israel – e não mais uma terra prometida de paz e justiça – acabou ganhando prevalência na vida judaica. Em vez do horizonte espiritual, a adaptação à concretude geopolítica. Ora, como desde 1977, com a eleição de Menachem Beguin, a política israelense sofreu uma guinada direitista, a diáspora não poderia ficar indiferente a tal inflexão.
Quão longe estamos hoje do perfil que desenhávamos sobre o judeu errante ou nômade. A fundação do Estado de Israel como o Lar nacional dos judeus, ao lhes oferecer um território, também os reterritorializou subjetivamente. O israelense devia ser duro, forte, vencedor, e se descolar ao máximo da imagem do judeu diaspórico, frágil, vulnerável, apátrida. Não faltaram intelectuais israelenses para colocar em questão tal imagem arrogante: os escritores Amós Oz e David Grossman, a poeta Léa Goldberg, o cineasta Amós Gitai, o filósofo e biólogo religioso Yeshayau Leibovics (que, ao se referir à ocupação da Cisjordânia, cunhou a expressão intolerável para um israelense: o nazi-sionismo!), o ativista e jornalista Uri Avenry – são alguns de uma lista imensa.
Não obstante, a Guerra dos Seis Dias, a conquista de territórios palestinos, os mecanismos cada vez mais perversos na gestão da população submetida, a crescente veneração do Estado, a supremacia do Exército, a miragem de uma Terra Santa, e do direito bíblico do “povo eleito” a ela, assim como o alinhamento incondicional com os Estados Unidos desembocaram no que vemos hoje – a mais sinistra aliança entre a extrema direita nacionalista e colonialista e o fundamentalismo religioso.
O pior, se arriscássemos uma reflexão mais ampla, é que o Estado de Israel reivindica o direito exclusivo de representar o judaísmo mundial e herdar o seu legado. Dita-lhe, assim, a forma nacional e a coloração política. É um sequestro da multiplicidade que antes compunha a memória histórica da diáspora.
Sabe-se que um importante conselheiro de marketing político americano, Arthur Finkelstein, convidado por Bibi Nethanyau para auxiliar em uma campanha especialmente difícil, após o assassinato de Rabin, teve uma leitura aguda do cenário israelense e uma sugestão diabólica. Seu diagnóstico era que a direita se identificava mais como “judia”, a esquerda mais como “israelense”. Para infletir a direção política do país era preciso contaminar o ambiente com um discurso “judaico” – estranho paradoxo para uma nação que quis desfazer-se de sua imagem diaspórica.
Foi o que aconteceu. Dispensável lembrar que este mesmo consultor, também judeu, foi quem sugeriu ao primeiro ministro Victor Orbán fazer do megainvestidor milionário judeu e húngaro, residente no Reino Unido, George Soros, fundador da Open Society, o inimigo público número um do país, ampliando a força da direita húngara e sua dimensão antissemita!
Não é pequeno o preço que um país paga por 55 anos de dominação sobre milhões de palestinos. Falamos dos israelenses mortos em combate para perpetuar a ocupação, mas sobretudo da insensibilidade que acompanha a inversão histórica de lugares. O atual governo que se considera herdeiro das vítimas do nazismo não enxerga a que ponto exerce, hoje, o papel de carrasco.
Uma blindagem sensorial no discurso e na prática, na mídia e na gestão da população, fez com que a violência micropolítica e macropolítica se naturalizassem. Estado de exceção, diz Giorgio Agamben, necropolítica, diz Mbembe. A ameaça iraniana, que é real, só encobre e reforça a denegação da ocupação dos territórios – tema tabu, sempre relegado a segundo plano, embora ocupe os noticiários diariamente. É a lei do mais forte redesenhando a geopolítica e suas prioridades.
E qual o efeito disso entre os judeus brasileiros? Foi o que vimos: a aproximação de parte da comunidade com o candidato à presidência que jamais escondeu suas simpatias para com regimes autoritários. Seu governo ressuscitou o que parecia superado: laivos de suprematismo branco, desprezo pelas populações originárias ou precarizadas, propaganda inspirada em Goebbels, a valorização da força militar ou miliciana, o belicismo assumido, o ataque sistemático às instituições e à cultura, o genocídio.
Em suma, uma agenda de extrema direita alinhada com o que de mais regressivo se possa imaginar. Ademais, a adesão irrestrita da extrema direita brasileira à política israelense era visível: a bandeira de Israel passou a fazer parte da campanha bolsonarista, e apareceu até na invasão golpista dos palácios na Praça dos Três Poderes no dia 8 de janeiro de 2023! Ou seja, para muitos judeus não havia contradição alguma entre posturas fascistas ou protonazistas e o alinhamento incondicional a Israel. Tudo se encaixava.
O bolsonarismo conseguiu a adesão de parte dos judeus brasileiros não apesar de sua faceta fascista, porém justamente devido a ela. Por conseguinte, é preciso se perguntar o que ocorreu com parte dessa comunidade, do ponto de vista ético ou político, que de minoria perseguida ou refugiada passou a ocupar um estamento de classe média alta e aderiu a ideologias totalitárias.
O riso e aplausos que o humor racista de Jair Bolsonaro extraiu do público durante palestra na Hebraica do Rio de Janeiro, durante sua campanha presidencial de 2018, foi disso apenas um dos indícios. A participação de um Weintraub no Ministério da Educação foi outro – eis onde fomos parar: um iletrado que cita com orgulho o célebre escritor judeu de nome Kafta.
É difícil não colocar na balança esses aspectos quando se questiona qual deve ou pode ser o grau de pertinência, de participação, de implicação de um judeu ou uma judia no contexto brasileiro. É óbvia a repugnância que provocou em muita gente a cumplicidade ativa de parte da comunidade com uma pauta que décadas antes fora, para os judeus europeus, a causa de sua desgraça. Que o alvo agora sejam negros ou indígenas, gays ou pobres, encarcerados e indefesos de toda sorte, apenas testemunha a profunda mudança de inclinação e sensibilidade de parte da comunidade judaica, dada sua recomposição de classe, sua identificação com as elites de um país tão desigual, com o consequente conformismo diante do racismo atávico (estrutural) do qual, aliás, também ela, como parte da parcela branca da população, se locupletou.
As elites brancas desse país têm a maior dificuldade em reconhecer a “branquitude” sobre a qual repousam seus privilégios. O mesmo vale para os judeus, por mais que se escudem no histórico de perseguições de que foram vítimas. A falta de empatia com descendentes de tragédias horrendas como a dos afrodescendentes ou dos povos indígenas levanta perguntas cáusticas sobre a dialética da dominação, a identificação com o agressor, a denegação, a dificuldade na elaboração do trauma, a repetição histórica.
Ora, como mudar isto? Não há, a meu ver, solução rápida, assim como não o há para o fascismo. A luta é a mesma, o desafio é o mesmo. Ainda que iniciativas específicas pudessem ser levadas a cabo nos espaços da comunidade, cada vez mais escassos, não creio que tenham qualquer eficácia caso se mantenham desvinculadas do entorno mais amplo.
A Casa do Povo, mencionada acima, é um bom exemplo nessa direção, com sua linha de atuação ao mesmo tempo local e global, singular e universal, histórica e atual. Abrigo de perseguidos durante a ditadura militar, hoje convivem lado a lado o coral ídiche, festejos judaicos, ensaios e apresentações de grupos artísticos guaranis, bolivianos, transexuais, discussões sobre Junho de 2013, ensaios da Cia Teatral Ueinzz. É nessa confluência entre diferentes mundos que se vislumbra alguma saída.
Uma outra via que me ocorre, nessa mesma toada, é a dos livros. Jacó Guinsburg nos ensinou o que pode uma editora em um país como o Brasil. Ao lado de Scholem, Buber, Agnon e os maiores nomes da literatura judaica mundial, o mais arrojado catálogo do pensamento universal, de Platão a Nietzsche, das obras completas de Espinosa a Hannah Arendt, sem falar nos ensaios clássicos e modernos de estética, de teatro, de semiótica – a lista é infinita. O que deve o Brasil a esse projeto editorial ainda está por ser escrito.
A pequena editora que fundamos há dez anos atrás vem no rastro de um tal espírito. Títulos como Crítica da razão negra (Mbembe), Corpos que importam (Butler), Metafísicas canibais (Viveiros de Castro), Cosmopolítica dos animais (J. Fausto), Manifesto contrassexual (Preciado), O reino e o jardim (Agamben), O enigma da revolta (Foucault) são uma pequena amostragem dos vários mundos convocados pela n-1 edições. Esparsas, livro de memórias de família de Georges Didi-Huberman sobre o Levante do Gueto de Varsóvia, a ser lançado na semana de celebração da efeméride na Casa do Povo, faz a ponte mais diretamente com o universo judaico.
Mas é preciso dizer uma última palavra sobre expoentes da cultura de origem judaica que se entregaram de corpo e alma ao contexto brasileiro. Clarice Lispector, Paulo Rónai, Maurício Tragtemberg, Mira Schendel, Vladimir Herzog, Jorge Mautner, Boris Schnaiderman, também aqui a lista é imensa.
Contudo, eu ressaltaria uma das figuras mais tocantes do ponto de vista do encontro com a alteridade. Claudia Andujar nasceu na Suíça e passou a infância na Transilvânia, na época sob dominação húngara. Com a invasão nazista, toda sua família paterna foi deportada para Auschwitz. Já adulta, veio parar no Brasil, onde exerceu o ofício de fotógrafa e se interessou especialmente pelos Yanomami.
Toda sua obra artística, que é a vida, foi dedicada à defesa dessa etnia. Em 1977 fundou a Comissão Pró-Yanomami (CCPY). Aliada ao xamã Davi Kopenawa e ao missionário Carlo Zacquini, empreendeu campanha internacional de grande envergadura em favor da demarcação, cujo resultado foi a homologação, em 1992, da Terra Indígena Yanomami. Recentemente, em meio à revelação do genocídio naquela área, que coincidiu com uma grande exposição de suas obras em Nova York, Claudia reiterou em rede de comunicação nacional a conexão entre as duas pontas de sua vida: tendo perdido a família no Holocausto, abraçou a causa yanomami como sua, evitando que também eles fossem exterminados. Haveria exemplo mais digno de encontro e entrelaçamento de mundos diferentes? Não há algo de profundamente judaico nessa ética da aliança e da solidariedade?
Talvez é o que mais nos falte, no Brasil, entre as ditas minorias – que seja feito o que no universo indígena é incumbência do xamã – a negociação entre mundos. Um xamã se oferece como um diplomata “cosmopolítico”, entre vivos e mortos, animais e humanos, passado e presente. Guardadas todas as proporções, na imensa diversidade que compõe este país, talvez o mais importante seja favorecer a coexistência entre a pluralidade de mundos, sem que nenhum deles pretenda à exclusividade – diferentemente do que tentou o governo anterior, com seu projeto de refundação do Brasil em bases evangélicas e suprematistas.
Uma coexistência não significa cada um fechado no seu gueto, cultivando sua identidade essencialista, num raso multiculturalismo. É preciso que tais mundos possam afetar-se uns aos outros, contagiarem-se, sensibilizarem-se mutuamente. Por vezes, disso até podem nascer novos povos e outros modos de povoar o planeta.
Mas como estar à altura de um tal desafio? Não poderíamos sonhar com uma “internacional cosmopolítica”? Será tal aspiração uma alternativa ao messianismo judaico eurocêntrico, outrora tão pregnante e frutífero, porém cada vez mais esmaecido e inoperante?
*Peter Pál Pelbart é professor titular de filosofia na PUC-SP. Autor, entre outros livros, de O avesso do niilismo: cartografias do esgotamento (N-1 Edições). [https://amzn.to/406v2tU]
Publicado originalmente em A terra é redonda
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