Publicado originalmente na CartaCapital
POR GUILHERME BOULOS
Xerife, cabo eleitoral e adversário político… Moro só não cabe no figurino de juiz
Cinco anos após o início da Operação Lava Jato, as mensagens reveladas pelos jornalistas do The Intercept Brasil expuseram as entranhas de um grupo do Judiciário que, julgando-se acima do bem e do mal, cruzou todas as linhas da ética e da legalidade. O material até agora divulgado comprova que quem era responsável por investigar e denunciar os réus trocou confidências, estratégias e avaliações com quem os julgava, ao arrepio do Código de Processo Penal e colocando toda a credibilidade da operação sob suspeita.
Mesmo depois de inúmeras ilegalidades e abusos, figuras como Sergio Moro e Deltan Dallagnol seguiam protegidos de críticas de grande parte da mídia, que transformou o legítimo combate à corrupção em espetáculo e procuradores e juízes em heróis da nação. A partir de 2014, o Brasil assistiu quase que semanalmente a conduções coercitivas, prisões preventivas injustificadas, decisões judiciais regidas pelo calendário político e uma série de atropelos da lei, sem qualquer tipo de investigação e punição aos agentes responsáveis. Não deixa de ser pedagógico ver os mesmos que abusaram de vazamentos ilegais criticando a publicação de trechos de conversas entre os agora suspeitos.
É importante deixar claro que Moro jamais se comportou com a isenção que se espera de um juiz. Atropelava advogados de defesa e atuava quase como um xerife em audiências. Divulgou grampos ilegais entre um ex-presidente e uma presidenta da República. Desacatou publicamente a decisão judicial de um desembargador. E atuou como cabo eleitoral ao retirar o sigilo de uma delação poucos dias antes do primeiro turno das eleições presidenciais. O ex-juiz não se importava sequer em esconder sua sanha contra Lula e seus familiares. Ordenou uma devassa na vida de toda a família do ex-presidente, chegando a confiscar até um tablet do seu falecido neto Arthur e expor conversas íntimas de dona Marisa Letícia e seus filhos.
Sem a toga, aparecia em fotos sorridentes ao lado de figuras como Aécio Neves e João Doria e recebia prêmios na Europa. Dava entrevistas e emitia notas públicas para a mídia como uma celebridade. Xerife, cabo eleitoral, adversário político e aspirante a herói nacional: Moro parecia caber em qualquer um desses figurinos, menos naquele da magistratura.
O ponto mais revelador dessa trajetória foi ter aceitado o convite para o Ministério da Justiça de Jair Bolsonaro. Ao despir publicamente uma toga que jamais honrou, Moro entrava oficialmente para a política e recebia o prêmio por ter prendido e retirado o candidato favorito das eleições. Por tornar tão explícita a parcialidade e suspeição no julgamento de Lula, sua nomeação como ministro acendeu um sinal de alerta até entre aqueles que endossaram seus atos na Lava Jato.
No domingo 9, as reportagens com as conversas entre Moro e os procuradores deixaram o ex-juiz nu em cima do palco. Convenhamos: para quem acompanhava sua trajetória com um mínimo de espírito crítico, as mensagens não foram exatamente uma surpresa. Comprovaram aquilo que denunciávamos há alguns anos: a indistinção entre juiz e acusador na República de Curitiba.
O material publicado até agora comprova o nível de ilegalidade e imoralidade com que os integrantes da Lava Jato se autorizaram. A condenação de Lula no caso do triplex do Guarujá é o capítulo mais transparente. A dificuldade em ligar o ex-presidente ao apartamento chegou a ser confidenciada por Dallagnol em uma das mensagens, na qual diz que a denúncia era baseada “em muita prova indireta de autoria”. Moro teve de encorajá-lo a seguir no caso: “Definitivamente, as críticas à exposição de vocês são desproporcionais. Siga firme”. No artigo 254, o Código de Processo Penal declara suspeitos os juízes que tiverem “aconselhado uma das partes”. Moro não apenas aconselha a parte que acusa, ele estimula, faz críticas e chega a perguntar ao procurador se não era momento de mais operações…
A despeito da conhecida arrogância dos personagens, chama atenção o fato de nenhum dos envolvidos ter negado a veracidade das conversas. Restringiram suas críticas ao vazamento, sob a alegação de que se tratou de ato ilícito de um hacker. Chegam ao ponto de dizer que seu conteúdo não tem “nada demais”. Como seriam suas reações caso um juiz mantivesse conversas secretas com advogados de defesa de investigados?
Não custa lembrar que uma das “10 medidas contra a corrupção”, encabeçada pelo Ministério Público e propagandeada de forma acintosa por Dallagnol, inventava a figura jurídica do “informante do bem”, que “de boa-fé”, reportasse voluntariamente, inclusive com provas ilícitas, condutas ilegais em organizações públicas ou privadas. O feitiço virou contra o feiticeiro.
O que foi revelado até agora já é mais do que suficiente para Moro ser afastado do Ministério da Justiça. Ele perdeu definitivamente as condições políticas e morais para o cargo, se é que algum dia as teve. Os novos fatos também colocam a urgência de exame pelo STF do pedido de suspeição de Moro para julgar Lula.
O código é claro: aconselhamento de partes define suspeição do juiz e sentença proferida por juiz suspeito é nula. Ou seja, está evidente o comprometimento do processo contra o ex-presidente. A liberdade imediata de Lula é fundamental para reparar uma minúscula parte da injustiça cometida.
Conforme novas reportagens forem publicadas saberemos a extensão e o papel de diferentes atores nessa trama. Glenn Greenwald sinalizou a existência de mensagens que demonstram a relação promíscua entre Moro e a Rede Globo. Haverá mensagens do episódio Favreto? Das interferências no processo eleitoral? Dos termos do diálogo com Bolsonaro sobre o Ministério da Justiça e a prometida vaga ao STF? Seguramente, há muita gente em Brasília com razões para insônia. Por enquanto, a única certeza é que, tal qual o náufrago de Gabriel García Márquez, Moro pode ter sido “proclamado um herói nacional, beijado por rainhas de beleza, feito rico com a publicidade”, mas acabar “rejeitado e esquecido para sempre”.