Professor da PUC-SP, o jurista Pedro Serrano, do Grupo Prerrogativas, participou de uma live do DCM Ao Meio-Dia e falou sobre os males da “cultura coach”. Para ele, esses coachs de auto-ajuda fazem parte de uma cultura de extrema direita e que tem bases fascistas.
Serrano cita como exemplo os malefícios dos palestrantes red pills para os jovens homens, que incorporam uma cultura masculinista e machista. Nessa esfera, o jurista afirma que esses saberes são anticientíficos.
O professor também abordou outra área de desinformação que é a chamada “cura gay”, exaltada por bolsonaristas e setores evangélicos. Serrano comentou esse assunto ao abordar o caso do suicídio da influencer Karol Eller, ex-apoiadora do ex-presidente.
Confira os principais trechos.
“Cultura coach é fascista”
Hoje em dia tem muito essa coisa do coaching e as pessoas não entendem o que significa ser coach. Existem algumas ciências que são desenvolvidas para essa atividade que vão desde a neurologia até a psicanálise. São formas mais racionais e não vou entrar aqui na discussão se psicanálise é ciência ou não. Só que são formas racionais de terapia desenvolvidas por anos por cientistas e por gente qualificada.
O que faz o reacionário? Ele acha que terapia, psiquiatria e ciência não são as formas adequadas de reduzir o sofrimento humano e de oferecer mecanismos mais adequados de comportamento.
Por isso, esse indivíduo acha que a moral religiosa em geral deve fornecer os padrões de conduta. E se você seguir aquela moral religiosa, você terá condições de ser feliz e sofrer menos.
E daí ele desenvolve o quê? Qual é o trabalho que sobra para essas pessoas? Elas desenvolvem habilidades do neoliberalismo que se encontram com o reacionarismo.
O neoliberalismo é uma forte força reacionária. Ele passa a desenvolver skills, habilidades, nesse segmento. E eles vão nesses “red pills”. Se você é um jovem que tem 15 anos, com uma evidente dificuldade como todos nós temos de desenvolver relação com mulheres, você tem lá sua timidez, e quer resolver isso.
O correto é ir na terapia. Lá você dialoga sobre tua vida e vai racionalizar com um profissional que vai te ajudar. No entanto, não é isso que os red pills estão propondo para esses jovens.
Os mais novos vão para essa cultura coach, que é um zero em termos de saber. É uma solução meio picareta de um cara que tem dois ou três livros e vai lá e começa a orientar as pessoas de como elas devem agir. O coach faz isso procurando como se fosse uma questão de desenvolver habilidades para conquistar uma mulher.
Fazem isso até para viver sem mulher, também. Tem alguns deles que propõem que a vida se torne uma relação entre moral e habilidades. Por isso, o coach não é inocente.
Coach é uma forma de destruição da ciência. É uma forma de negação da ciência. É uma forma reacionária de encarar a existência. Isso tem que ser denunciado.
Nós temos que denunciar isso. Temos que denunciar como uma falsidade, uma picaretagem que não é brincadeira. Está cada vez mais entrando na vida das pessoas.
Todo mundo é coach hoje em dia. Na área de concurso público tem gente que diz que não é professor e que é coach.
A gente tem observar que quando você fala a palavra coach, você está pressupondo que as formas de amenizar o sofrimento humanos são dadas pela moral religiosa. E que nada mais pode ou deve ser construído. Além disso, o único papel que o ser humano pode ter é o de desenvolver habilidades no outro. Como se viver fosse uma questão de habilidades e não uma questão de dor e de compreensão.
Há uma desumanização da gente nesse processo. Tem que apontar que isso é uma negação da ciência. Isso é uma forma de querer destruir a nossa sociabilidade, de querer destruir formas civilizadas de relação.
É assim que a gente destrói o fascismo. É nessas pequenas coisas também, apontando, denunciando, tendo coragem de denunciar.
Alguns dos coach são, grosso modo, parte de uma cultura fascista sendo construída, uma cultura de extrema direita que é reacionária. Nós temos que romper com ela, que está em vários ambientes da existência aqui na internet.
É impressionante que qualquer pessoa que tem um mínimo de saber, o mínimo de consciência crítica, identifica uma série de assuntos e temas em que essa cultura está presente. E nós temos que desenvolver uma cultura democrática, a nossa cultura, os nossos valores, os nossos princípios, a nossa moralidade.
Uma moralidade democrática e um senso de justiça no ambiente da democracia que nós temos que divulgar. Se você está sofrendo, se você é um menino jovem tímido que quer arrumar uma namorada, vá ao terapeuta, vá ao psicanalista.
Vamos fazer cursos sérios de psicanálise. Vamos fazer cursos de neurociência. Vamos começar a qualificar esses debates. Eu sei que a nossa dificuldade é grande porque chega um picareta desse dá 10 lições para o cara. Diz para tratar a mulher desse jeito ou ser frio com ela para ela se interessar.
Dão umas aulinhas, umas regrinhas de comportamento, que é cômodo pra pessoa que está ouvindo. Vou seguir essas regrinhas e vou me dar bem.
O ser humano é um ser complexo. Nós, em especial os de esquerda, os progressistas, tentamos compreender a complexidade da sociabilidade e da existência. É mais difícil você tratar da sociabilidade com complexidades.
Dai os fascistas vem e falam isso aqui é um óculos custa dois reais no supermercado. A esquerda diz que isso parece ser um óculos, tem o sentido de óculos, o uso de um óculos, mas isso aqui é uma relação social. Olha como é complexo você falar isso.
A gente apresenta essas complexidades. Precisamos ser mais articulados, mais organizados e ter um pouco mais de paciência. Expondo e não fazendo concessões.
Às vezes a concessão tem uma certa ingenuidade. Falamos que esse negócio de terraplanismo não faz mal a ninguém. Faz sim.
Esse negócio de coach não faz mal a ninguém? Faz muito mal. Vejo essas palestras de red pill e é um contingente grande de rapazes, de adolescentes, que estão achando que você pode desenvolver algumas técnicas de dessensibilização em relação à mulher. Umas técnicas de profundo machismo.
Uma coisa difícil de ter na vida é afeto. Todo mundo sabe disso. Angústia é algo dolorido. Ninguém deixa de estar angustiado.
Eu acho que a gente tem que observar até nessas pequenas coisas. Temos que romper com o circuito afetivo deles, romper com uma cultura de extrema direita. E ela se dá em vários ambientes da existência.
“Terraplanismo não é inofensivo”
Esse movimento extrema direita hoje em dia tem muito um caráter cultural. A gente tem que ir desmontando isso.
Essa gente penetra em todos os ambientes e a gente vai achando que são pessoas ingênuas, sabe?
Terraplanismo. Nós achamos que isso é ingênuo. Não é inofensivo. [O sociólogo Émile] Durkheim falava que toda a sociabilidade depende de um mínimo de consenso lógico.
Quando se destrói um consenso lógico minimo, de direção, como o norte e o sul, você fala em Terra plana.
Isso começa a romper com um consenso lógico mínimo da sociabilidade, criando gente maluca do jeito que eles acham que tem que ser.
“Cura gay deveria ser criminalizada”
Acho que temos que tomar medida nesse caso [do suicídio da bolsonarista Karol Eller]. Me lembro de ter dado um parecer para o Conselho Federal de Psicologia quando começaram com essa história de “cura gay”.
O conselho queria proibir isso. Psicólogo não pode adotar esse método. Não existe essa história de “cura gay”. Isso é absolutamente contrário a tudo o que a ciência conhece até hoje. Não tem sentido você falar nisso.
Isso é inexistente. Primeiro que não é doença para se curar. Começa por aí. Não é um desvio de caráter ou de personalidade E isso pode causar sofrimento.
Eu tenho um filho gay e eu tenho uma filha bi[ssexual]. O que pode provocar sofrimento para um gay ou para uma trans não é a vida dele. Não é a orientação sexual que ele tenha.
O que provoca sofrimento é a sociedade com seu preconceito, com sua violência. É isso que provoca dor.
A sociedade é que tinha que ser curada. E não o sujeito. É evidente que que há um caráter absolutamente não científico.
O psicólogo que adota esse ponto de vista da “cura gay” é realmente um não psicólogo. Ele trai a própria profissão dele. Porque, no fundo, ele acredita que se você seguir certas regras morais, isso é o suficiente para você ser feliz.
A vida não é assim. A vida é muito complexa. Uma pessoa pode ser feliz sendo monogâmica, papai e mamãe, tipo foto de família daquela propaganda de margarina. E tem gente que não é.
Tem gente que é feliz com três mulheres, quatro homens, uma confusão, e cada um tem um jeito de se realizar na existência de viver seus prazeres e suas dores.
E as ciências da psicologia, da psicanálise, da neurociência, estão aí para nos ajudar a reduzir o sofrimento existencial. Porque viver é doído e nós estamos num momento da história humana que talvez nunca tenha sido tão difícil viver. E certamente essa gente reacionária contribui para ser mais difícil viver.
Porque eles enganam um monte de gente falando que, se você seguir meia dúzia de regras morais, você vai conseguir ser feliz.
Vai nada. É tudo hipócrita. Em geral, esses caras que querem fazer “cura gay” são enrustidos. É impressionante. Porque essa tal “cura gay” tem a ver com a lógica do que eu tenho defendido há anos que a homofobia ela não é um ataque à realização do sexo homossexual ou transsexual.
Não é isso. A homofobia é um ataque à manifestação do afeto homossexual. Nós seres humanos precisamos expressar afetos. Não basta pra gente sentir e viver para mim. Não basta estar apaixonado por alguém e ficar vivendo com ela aqui em casa, quieto e na sombra.
Preciso usar uma aliança que é sinal do casamento. Eu preciso sair na rua de mão dada numa praça e beijar publicamente. Não há forma de organização humana conhecida até hoje que não exista sem algum tipo de forte expressão afetiva.
A livre expressão não é só um direito de livre expressão de pensamento. Também é o direito à livre expressão afetiva. É isso que eles querem tirar do povo LGBTQIAP+. Querem tirar o direito de se expressar afetivamente. Tudo bem que se você for gay, mas que você seja discretinho na sua casa.
Vamos fazer uma terapia para você aprender a reprimir isso aí, que é o cara deixar de ter “desejo gay”. É isso que eles falam e você sabe que isso é impossível. E eles se dedicam a estabelecer uma terapia repressiva.
Tudo o que uma terapia não pode ser é repressiva. Isso é um crime. Vamos ser claro aqui: precisamos combater um crime que é profundamente antiético. Realizar uma terapia repressiva que vise reprimir o desejo sexual é profundamente desumano.
É cruel. É perverso. E nada tem a ver com a palavra psicologia, que foi criada para reduzir sofrimento e não para criar mais.
Essa moça [Karol Eller] chegou a um ponto em que se suicidou. Que tragédia, né? E é esse tipo de procedimento que pode ocasionar isso.
Esses coach fazem a mesma coisa. Pegam o menino que não se relaciona com mulher, com essas feministas. E eles falam em macho alfa e os inferiores como beta. Red Pill e o Blue Pill.
Tratam como se fosse simples assim. Essa gente faz mal para as pessoas. A pessoa se mata mesmo e não faz terapia. Quis recriminar, quis reprimir o desejo mais bonito que a vida pode nos dar, que é o desejo sexual de um lado e a afetividade do outro.
Esses deputados como Érika Hilton, pastor Henrique Vieira, acionaram o MP para investigar essa Assembleia de Deus do Rio Verde, em Goiás, por causa dessa prática de “cura gay”, especialmente depois que foi apontado que o tal retiro oferece serviços para converter jovens homossexuais e bissexuais à heterossexualidade.
A atitude dos deputados, se for levada à cabo de maneira corajosa, pode ser uma quebra de parâmetro em relação ao que as igrejas evangélicas fazem. Eles fazem esses crimes. “Cura gay” deveria ser criminalizada.
Tem que ser criminalizado isso. Um sujeito formado em psicologia que oferece conscientemente um troço desses é um criminoso. “Cura gay” deve ser criminalizada.
A gente teve na pandemia o médico que sabia que cloroquina não funcionava. Médico tem consciência do que não funciona e isso não tem a ver com o direito do profissional da Saúde indicar medicamento off label. Não é a festa da uva.
Os procedimentos científicos implicam em protocolos e certas formas de saber que são adquiridas pela ciência do bom senso. Ao mesmo tempo, é consenso na ciência criar zonas de incerteza que convivem com zonas de certeza.
Por isso é tão cruel quando você dá cloroquina e o cara acaba morrendo. Isso aconteceu com gente próxima a mim, de muita gente na pandemia. Sinceramente eu acho que essa gente que defende esse tipo de “cura” tinha que ser criminalizada. É algo para se pensar porque faz mal profundamente. Pode levar o outro a se matar com uma angústia que é muito intensa.
E quem faz essa “cura gay” é um profissional, sustentando um título profissional. É como advogado que defende tortura. Quando vejo esse tipo de advogado, falo que tinha que ter carteira cassada. Esse cara não tem noção do que é o Direito, né?
Então são coisas que a gente tem que restabelecer. A dignidade ética das profissões e das atividades. Hannah Arendt diria que a profissão não é só conhecimento para técnica e sim para reflexão. E você precisa ter reflexão ética para encontrar um sentido nesse pedaço da sua vida em que você se dedica à profissão. Refletir sobre o que você está fazendo e as consequências.
Veja a live na íntegra.
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