Sim, o “agro” é o vilão do colapso climático

Se nada for feito, temperaturas no Brasil crescerão acima da média global. Secas e inundações serão mais frequentes. E virão crises sociais, urbanas e sanitárias, com milhões de “refugiados do clima”. Enquanto isso, o ruralismo continua com “salvo-conduto” para devastar

Atualizado em 21 de setembro de 2024 às 12:49
Animais também são vítimas das queimadas. Foto: Saul Schramm/Brasil de Fato

Por Jean Marc von der Weid, no Outras Palavras

Enquanto a fumaça não irrita os olhos, a garganta e os pulmões de crianças a idosos das zonas metropolitanas na ou próximas da costa brasileira parece que o fogo que devora milhões de hectares da vegetação de vários biomas não acontece neste país e sim em outro continente ou outro planeta.

Estamos em plena crise ambiental e nem o governo, o Congresso, a imprensa e os candidatos ao próximo pleito municipal estão sensibilizados com a extrema gravidade da situação. Foi preciso que a cidade de São Paulo fosse classificada em primeiro lugar entre 120 do planeta com a pior qualidade do ar durante dias seguidos para que houvesse alguma reação, mesmo assim, ninguém (ou quase), fora do círculo estreito dos ambientalistas e cientistas está denunciando as implicações do mar de chamas para o futuro próximo do país e muito menos apontando as responsabilidades.

As queimadas e desmatamento são algo corriqueiro e crescente no Brasil desde que os militares resolveram “integrar para não a entregar” a Amazônia, desde os anos 70 do século passado. Foram 200 milhões de hectares desmatados e queimados nos últimos 40 anos, desde que a ocupação das “novas fronteiras agrícolas” se acelerou. 73 milhões destes hectares se localizam na Amazônia.

Em momentos de maiores incêndios cientistas e ambientalistas gritam, alguns deputados discursam, governos tergiversam e a imprensa especula. A opinião pública continua ignorando as causas e consequências destes fatos assustadores e dormindo em berço esplêndido, embora a lua e as estrelas (e até o sol) fiquem apagados ou opacos por um tempo pela fumaça.

Comecemos pelos impactos deste prolongado processo de destruição. Queimadas e desmatamento estão provocando uma mudança climática no Brasil, mais acelerada do que na maior parte do planeta. As ondas de calor estão ocorrendo em todo o mundo, devido ao aquecimento global para o qual as emissões de gases de efeito estufa e redução da captura de carbono provocadas pelo nosso desmatamento e queimadas contribuem significativamente.

Somos o sexto maior emissor de CO2, e o nosso aporte para a destruição do planeta provém principalmente das queimadas e desmatamento. Mas o primeiro impacto deste aquecimento é aqui mesmo e mais intenso do que em outras partes do mundo.

Enquanto no resto do planeta o aumento das temperaturas médias está batendo os fatídicos 1,5º Celsius este ano, prevê-se que já em 2025 a Amazônia vai registrar um aumento de 2,5º C. Estes números parecem coisa pouca para os leigos, mas eles significam máximas de temperatura superando os 40º C com muita frequência ao longo do ano e não apenas nos meses de verão. Para quem não vive em ambientes controlados pelo ar refrigerado isto significa mais do que um incomodo, mas uma ameaça concreta para a saúde, sobretudo para crianças, idosos e trabalhadores em espaços abertos.

A Amazônia queima

Em quase todo o país a previsão é de aumentos acima da média mundial: mais 2,5º C no Nordeste, mais 2º C no Centro-Oeste e mais 1,5º C no Sudeste. Apenas no Sul o aumento previsto (1º C) está abaixo da média mundial.

O segundo efeito grave do processo de desmatamento e queimadas é a queda no volume das chuvas e talvez ainda mais grave, na sua grande irregularidade. Como vimos este ano, Porto Alegre foi afogada em um ano em que o resto do país vive uma seca prolongada por dois anos consecutivos, sem perspectiva de alívio na próxima estação chuvosa.

As previsões para o ano que vem indicam reduções dos índices médios de precipitações de 20%, na Amazônia, 25%, no Nordeste, 15% no Centro-Oeste, 10% no Sudeste. No Sul as precipitações crescem 5%.

O sistema dos “rios voadores” que irrigam o Sul, Sudeste e Centro-Oeste com umidade produzida pela evapotranspiração da floresta amazônica está sendo desequilibrado pela destruição do bioma. As regiões que concentram 80% da nossa produção agrícola (quase totalmente dependente de água de chuva) estão sujeitas a perdas de 10 a 30% da produção, dependendo da cultura e da região. O impacto sobre a economia será enorme, tanto na balança comercial como no preço dos alimentos. A fome, problema mal resolvido no Brasil mesmo em períodos menos ambientalmente desfavoráveis, vai afetar muito mais gente do que a que padece hoje.

O desequilíbrio climático, com menos chuvas, temperaturas mais altas e menor umidade do ar, já está provocando a redução da vazão dos nossos rios, sendo que o mais afetado é o São Francisco, com 60% de vazão reduzida nos últimos 30 anos. Os efeitos aparecem no abastecimento de várias cidades, inclusive com algumas já em racionamento e outras com a piora da qualidade da água.

A redução na geração de energia elétrica já é elevada em 9 usinas, cinco delas no São Francisco (Sobradinho, Apolônio Sales, Paulo Afonso, Luiz Gonzaga e Xingó). Todo mundo vai sentir no bolso o custo das bandeiras vermelhas do Operador Nacional do Sistema que vai acionar as termoelétricas, aumentando a nossa contribuição para o uso de combustíveis fósseis com o consequente aumento das emissões de CO2.

O ar irrespirável em São Paulo dá manchete de jornal nas metrópoles, mas as cidades do norte e centro-oeste já são afetadas ano a ano há muito tempo. E é bom ir se preparando para uma repetição cada vez mais frequente deste “mau tempo” daqui para frente.

E quem são os responsáveis por este estado de coisas?

Segundo a maioria dos jornais e comentaristas das televisões a causa mais citada é o “aquecimento global”, sem que se aprofunde quem são os responsáveis por este fenômeno. Pode-se dizer que há, na imprensa brasileira, um passo adiante na compreensão do problema pois, pelo menos, não se nega o aquecimento global. Mas para muita gente, este é um fenômeno natural, independente do fator humano. Entre evangélicos é comum uma posição resignada do tipo “é a vontade de Deus”, ou ainda “Deus nos pune por nossos pecados”. Nada mais paralisante do ponto de vista da necessidade de se fazer alguma coisa.

No Congresso, mas também nas Assembleias Legislativas, no executivo federal, mas também nos Estaduais e nas prefeituras e Câmaras Municipais, prevalece uma paralisia e um descaso com a catástrofe que nos assola agora e nos ameaça no futuro, a não ser para pedir dinheiro federal para medidas paliativas.

A poderosa bancada ruralista não dá um pio para discutir a crise, a não ser para pedir verbas compensatórias para as perdas do agronegócio. Pior do que isso, os ilustres parlamentares têm engatilhados 20 projetos de lei desmontando a nossa já muito esburacada e ignorada legislação ambiental. É a “boiada passando”, tal como nos tempos de Bolsonaro e seu criminoso ministro do Meio Ambiente, Ricardo Sales.

Dentre as avaliações mais frequentes escutadas nas TVs, aparece o conceito do “agronegócio bom”, aquele da propaganda (“agro é tec…”). Segundo vários comentaristas, há um setor “moderno”, “sustentável” e “amigo do meio ambiente” e ele tem sido chamado a se manifestar por mais de um âncora de programas de televisão. Não se aprofunda quem seria, por oposição a este setor, o agronegócio “mau”, o predador do meio ambiente. Seria ele o responsável pelas queimadas e desmatamentos? Ninguém diz isso com todas as letras, fica subentendido na maior parte dos casos.

Alguns números podem nos ajudar a pensar sobre este nosso agronegócio. As propriedades com mais de mil hectares somam 51.203, segundo o censo de 2017, e ocupam 167 milhões de hectares. Mas o nível de concentração de terras é ainda mais espantoso: apenas 2.450 proprietários rurais com áreas superiores a dez mil hectares ocupam 51,6 milhões de hectares! O primeiro grupo dos maiorais do agronegócio representa apenas 1% do total de produtores rurais, patronais ou familiares. O segundo representa 0,05% do total de produtores. Em termos de localização, perto de 75% destes grandes produtores do agronegócio estão no Sudeste, Sul e Centro-Oeste. São as grandes lavouras de soja, milho, cana de açúcar, café, laranja, algodão. Na Amazônia e no Cerrado encontram-se os maiores criadores de gado, com perto de 65% do rebanho bovino nacional.

O agronegócio se apresenta ultra concentrado em termos de propriedade de terras, mas esta concentração é ainda maior em termos de capital e de valor da produção. Apenas 25 mil destes superprodutores são responsáveis por 60% do valor básico da produção (VBP) agropecuária. Esta concentração de poder econômico se reflete em concentração de poder político.

A elite econômica do agronegócio domina as entidades do setor, inclusive a Confederação Nacional da Agricultura, mais convencional, e a Associação Brasileira do Agronegócio, mais recente e dinâmica. Este poder econômico é utilizado para financiar campanhas de publicidade de grande impacto e, sobretudo, eleger a maior bancada temática do congresso nacional: a bancada ruralista. Com Bolsonaro, o poder executivo tornou-se uma espécie de apêndice dos think thanks do lobby do agronegócio, adotando toda a agenda do setor.

Lembremos que o agronegócio não é apenas o setor primário, composto de fazendeiros e criadores, mas inclui as indústrias de insumos (agrotóxicos, sementes, fertilizantes e maquinário) e de processamento e os serviços correlatos. Há poderosos lobbies como as associações dos criadores de gado zebu ou de nelore, ou a Aprosoja, Abiove, etc. Mas algumas grandes empresas têm papel destacado, entre elas os grandes frigoríficos, sobretudo a JBS, maior processadora de carnes do mundo. E são eles que definem as políticas para os biomas que estão queimando há meses.

Tanto os criadores de gado como os produtores de soja e algodão, na Amazônia e no Cerrado, se beneficiam do processo de grilagem que acompanha a ocupação destes territórios. É a terra mais barata do mundo fazendo a nossa carne ser um dos produtos do agronegócio mais competitivos no mercado internacional. As terras griladas, quase todas de propriedade da União, não custam nada aos ocupantes desde longa data. Forjam-se documentos para “legalizar” as vendas das terras desmatadas e queimadas ilegalmente e, de tempos em tempos, sucessivos governos anistiam estes crimes. Criadores de gado compram as terras e as exploram até o bagaço, vendendo os bois para o “agronegócio bom”, para engorda em áreas não desmatadas recentemente. E os frigoríficos, o setor mais poderoso do agronegócio brasileiro, compram boi barato e exportam ou vendem a carne para o mercado interno, tudo devidamente certificado. Deve ser o setor mais rentável do agronegócio aqui e em todo o mundo.

E o que passa com os criadores de gado em outras regiões, muitos deles com tecnologia de ponta e até manejos sustentáveis do seu plantel? Sua carne é mais cara, mas de melhor qualidade e alcança melhores preços até na Argentina. Estes empresários são respeitadores do meio ambiente e capazes de se ajustar às regras novas da União Europeia com rastreamento para impedir a compra de carne oriunda de áreas desmatadas desde 2020. E por que não lutam por uma legislação nacional que obrigue esta prática? Trata-se de uma solidariedade com os agrotrogloditas da Amazônia, Cerrado e Pantanal?

Desconfio que este setor dito “moderno” tem interesse na persistência da criação de gado nas áreas desmatadas. Colocada em prática a legislação da UE no ano que vem, e com os chineses, americanos e ingleses discutindo medidas semelhantes, vai haver um bloqueio das exportações de carne bovina brasileira, aquela que não vai conseguir a certificação. É mais da metade das nossas exportações de carne que vai ficar retida no mercado interno e os preços nacionais vão cair. Por outro lado, quem tiver carne certificada vai poder aproveitar o aumento do preço da carne no mercado internacional (derivado do bloqueio) e o nosso agronegócio pecuário “bom” vai nadar de braçada por um bom tempo. Me parece um cálculo bastante razoável para explicar o silêncio cúmplice dos setores “modernos” do agronegócio e a falta de ação por uma legislação sobre o rastreamento.

O rastreamento da carne deveria ser uma legislação nacional aplicada com rigor e emergência para deter o desmatamento e queimadas na Amazônia, Cerrado e Pantanal. Ocorre que o governo não quer enfrentar o agronegócio no Congresso e prefere criar mais um organismo ambiental, chamado de “Autoridade Climática”. Nem discuto a importância deste instrumento, mas até ele começar a existir e operar o caldo pode estar entornado de vez.

No Brasil é sempre assim: frente a uma emergência cria-se uma comissão que vai discutir o que fazer, enquanto já se sabe há muito tempo que a medida capaz de conter o processo de desmatamento e queimadas é o rastreamento do gado e a certificação da carne. As ameaças de controle pelo Ibama ou ICMBio e Polícia Federal são irrisórias, mesmo se multiplicados os seus funcionários por milhares. É muito grileiro desmatando e queimando com a proteção ou não da milícia do tráfico de drogas e que também atua no garimpo ilegal. E eles contam com a cumplicidade da justiça local, dos policiais civis e militares, de governadores e prefeitos. O estrangulamento destes processos criminosos só será eficaz com medidas que impeçam a colocação dos seus produtos no mercado. Por outro lado, os bancos públicos e privados poderiam entrar na dança, exigindo o rastreamento para financiar frigoríficos e criadores de gado. No caso dos bancos privados isto não cobra sequer uma lei específica, só uma resolução administrativa.

Não basta para fazer discurso em visitas “preocupadas” às áreas sinistradas, como o Lula é mestre em fazer. Os cientistas dizem que mais dois ou três anos com os índices atuais de desmatamento e queimada a floresta amazônica vai colapsar. Não é um colapso localizado, este já ocorreu em todo o “arco de fogo” que vai do norte do Mato Grosso, o sul do Pará, o Tocantins, o Matopiba, Rondônia e Acre. Estamos falando de um processo de degeneração de todo o restante da floresta, que levará à transformação da grande planície úmida, cortada de rios enormes, em uma savana arbustiva e seca e, com o tempo, em um deserto.

É preciso pensar em um outro efeito iminente deste desastre: o deslocamento da população para as cidades dos três biomas citados e que vai se estender para as grandes metrópoles do sudeste e sul. Algumas dezenas de milhões de brasileiros vão se transformar em refugiados climáticos e aumentar a miséria urbana no país.

O Nordeste, por razões climáticas mais gerais, também se encaminha celeremente para passar de semiárido para árido, mesmo sem a intensidade dos desmatamentos tratados neste artigo. A previsão de aumento de temperatura média da ordem de 3º C na região vai implicar na perda de 30% da produtividade da agricultura, afetando principalmente a familiar. Estamos diante da forte probabilidade da retomada das crises sociais oriundas das secas, crises essas que perduraram até os anos 70. No passado, fugindo das secas, os “retirantes” a migravam para um “Sul” muito amplo, das cidades metropolitanas do Sudeste até as zonas rurais do Paraná e de São Paulo. Para onde irão os novos retirantes?

O agronegócio brasileiro sempre foi adepto do uso indiscriminado do fogo para expandir suas lavouras e pastos. Hoje o desastre é proporcional ao poderio adquirido por este setor. Ele sabe muito bem que no rastro deste avanço ficam dezenas de milhões de hectares (entre 80 e 100) de “áreas degradadas”, mas enquanto houver terras a grilar e florestas a queimar o processo vai continuar.

E depois? Ora, depois eles vão embarcar para Miami e gozar os dólares amealhados. Mal sabem que o aumento dos oceanos provocado pelo aquecimento global que eles ajudam a ampliar vai engolir o paraíso dos ricos brasileiros.

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