Publicado na Top Magazine.
Já passa das 21h de uma terça-feira abafada quando Elisa Quadros, a Sininho, atravessa a praça da Cinelândia, no Centro do Rio, rumo ao ponto de encontro marcado para a entrevista, ao lado do mítico bar Amarelinho e bem em frente à antiga “Brizolândia”, famoso QG dos velhos admiradores do governador Leonel Brizola, junto às escadarias da Câmara dos Vereadores.
Dois estudantes a acompanham o tempo todo. Ela está jurada de morte pelas milícias, quadrilhas de policiais mafiosos que dominam várias comunidades carentes do Rio de Janeiro. Mal ela chega e logo é cercada por uma multidão de mendigos que a beijam e abraçam. Uma cena que se repetiu diversas vezes nas 12 horas seguintes nas quais ela foi acompanhada pela reportagem de TOP Magazine.
A ex-produtora de cinema de 28 anos, pernas finas, bochechuda e que vive hoje sustentada pelos pais tornou-se uma personagem que desperta paixões e, principalmente, ódios – no ano passado, quando foi primeira página de veículos como a Veja e o O Globo, que a apontaram como uma das principais lideranças das marchas de junho. Dali para virar a “musa black block” foi um pulo.
Sininho foi presa diversas vezes (garante ter sido torturada na prisão) e, ao lado de outros 28 ativistas, foi alvo de um inquérito de 2.300 páginas que já virou peça do anedotário da crônica policial. Os investigadores basearam-se em um verdadeiro troca-troca de ressentimentos entre casais de 20 anos que se descobriram em um triângulo amoroso, e apontaram como suspeito o anarquista russo Mikhail Bakunin, morto em 1876 (o que gerou em muitos a lembrança da tentativa de prisão do autor grego Sófocles por agentes do Dops durante a Ditadura Militar).
Durante longas caminhadas pelas ruelas do bairro da Lapa até a chegada ao apartamento de Sininho – um conjugado de 40 m2 onde cinco pessoas dormiam espalhadas pelo chão, sendo uma delas um morador de rua – transpareceram personagens que estão bastante distantes do perfil traçado pelas autoridades de segurança do Rio. Os ativistas que andam com Sininho são estudantes de filosofia, professores de teatro da rede estadual, pessoas que não dão a menor pinta de que um dia vão topar morrer pela “causa” de parabélum na mão.
A própria Sininho, em poucos minutos de conversa, demonstra que não é a liderança que atribuem a ela. Ela é do tipo que faz comício, tudo bem. Mas seu excesso de vontade, de sentir necessidade de se posicionar politicamente em absolutamente toda e qualquer questão posta à mesa faz com que mesmo seus amigos mais próximos não escondam certo constrangimento com ela em várias situações. “Ouve o cara, Sino”, imploravam em um apelo repetido muitas vezes ao longo da noite. Sininho pode ser muitas coisas: ingênua, simplória, entusiasmada demais, mas definitivamente não parece ser o Che Guevara 2.0 que foi pintado por alguns setores da imprensa.
É uma menina idealista como muitas outras, que terminou a madrugada aos prantos, assustada e preocupada com seu futuro diante da fuzilaria infindável da qual é vítima. Por orientação de seus advogados, Sininho optou por não responder em detalhes as acusações do processo do qual que é alvo. Mas se permitiu abrir o coração para a imprensa e oferecer aos nossos leitores um de seus depoimentos mais sinceros e verdadeiros.
TOP – Começando com algo mais leve. É verdade que a Playboy te chamou para fazer um ensaio sensual?
Sininho – Ai, meu Deus… (risos) Primeiro teve aquela paródia, a Playbloc, comigo na capa. Depois teve essa história do convite mesmo. Achei uma coisa tão maluca que até hoje não sei se foi só um trote. Sei que um dia meu telefone tocou e o cara começou a falar que era da revista, que tinha o convite e coisa e tal. Sei que falei um palavrão bem cabeludo e bati o telefone. Nunca mais me ligaram. Mas sou muito magrinha, não ia vender tanto assim.
TOP – Por que o apelido Sininho?
Sininho – Sou pequenininha, espevitada, nervosa, agitada. E na época dos acampamentos em frente ao apartamento do então governador Sérgio Cabral, usava o cabelo bem curtinho e pintado de louro. Daí o apelido…
TOP – Como é ter virado a inimiga pública número 1?
Sininho – Extremamente assustador. O jornal O Globo publicou, no ano passado, uma primeira página com a foto de vários ativistas acusando-os de vândalos. Foi uma coisa irresponsável, criminosa. Para mim, o editor, que no dia seguinte assinou uma carta interna elogiando a matéria – carta que foi tornada pública por alguns repórteres –, não é um jornalista, é uma reles marionete dos donos da empresa. Uma pessoa que não tem responsabilidade humana. Tentaram me destruir como pessoa e inventar o “sujeito terrorista”. Não sou nada disso. Sou apenas uma ativista como centenas, milhares em todo o Brasil, que mergulharam nas marchas de junho, principalmente pela crise de representatividade que a gente encara hoje em dia. Disseram que O Globo perdeu 7% dos assinantes em 24 horas depois desse episódio. Me contaram ainda que os estagiários da redação ameaçaram sair da empresa pela postura do jornal. Isso foi muito bacana.
TOP – E aí veio a capa da revista Veja…
Sininho – Quando vi que fui capa da Veja, a primeira coisa que fiz foi chorar, chorar muito. Constatei que tinha virado o grande bode expiatório. A gente vive numa sociedade racista, machista e conservadora. Então, para você desmobilizar um movimento de massas que está incomodando, primeiro pega alvos que você possa usar. Por exemplo: a partir do instante em que o movimento diz que não tem lideranças, você cria as “lideranças” para gerar crises internas. Tudo o que estão fazendo é uma antiga tática: você cria lideranças para criminalizar o movimento e criar rachas internos.
Eles pegam branquinhas bonitinhas, como a Camila Jourdan (professora de filosofia da UERJ), para nos chamar de rebeldes sem causa. Os mais oprimidos no Brasil têm preconceito com a classe média. Assim, no meio dessa luta de classes, cria-se um símbolo apenas para gerar rachas internos. Se tem um líder, o movimento não é mais espontâneo. Com isso, todos aqueles movimentos sociais que foram para as ruas em junho voltaram para suas bolhas de militância. As pessoas esquecem, mas no começo do processo, a Veja tentou inventar uma outra liderança, um cara que não tinha nenhuma relação com as lutas, mas ganhou destaque nas tais páginas amarelas e, mais tarde, foi escorraçado pelas ruas quando descobriram que ele era, na verdade, um ator da Globo. Curioso isso, não?
TOP – A grande crítica que foi feita aos ativistas envolvidos com as marchas de junho está relacionada aos quebra-quebras e à atuação dos black blocs. Qual sua opinião sobre isso?
Sininho – Como muita gente sabe, a origem dos black blocs vem da Europa, como autodefesa das manifestações. No Brasil, por uma questão histórica, o surgimento do grupo, no meio do ano passado, estava, sim, relacionado apenas à questão da proteção. Mas foi além. A maioria deles vem da Baixada Fluminense. São meninos e meninas muito oprimidos, pessoas que lidam com a violência em seu cotidiano: um teve a irmã estuprada, outro perdeu o melhor amigo para o tráfico… A sociedade ao redor deles não oferece paz. Agora, se alguém vem e dá na sua cara, você fica quieto? Não, claro. Se você não fica, imagine esse sujeito que vive essa realidade? Frequentei praticamente todos os atos de 2013 e nunca vi nenhum manifestante começando a violência, sempre foi a polícia. Todo mundo viu a extrema violência policial nas ruas. Agora, se essa juventude acha que é justo destruir um símbolo do capitalismo, quem sou para reprimir? Que se dane o patrimônio privado! Mas toda vez que teve destruição do patrimônio público, os black blocs interviram. Não vou criminalizar jamais a luta desses jovens. Houve erros? Sim, porque faz parte do crescimento, do amadurecimento. Sabia que os black blocs pararam de falar comigo? Eles não aceitam liderança. Então como assim, de repente, aparece uma pessoa que é tida como liderança nacional, internacional? Eles estão certos de não querer falar comigo, de não me deixar mais chegar nem perto deles.
TOP – Alguns críticos enxergam um viés fascista na negação de vocês a todo e qualquer partido político.
Sininho – Nós somos contra essa democracia representativa que a gente tem. Ninguém representa mais nada. Os partidos ditos de esquerda só querem saber de engessar e aparelhar os movimentos sociais. Já os partidos de direita são todos fascistas e conservadores. Nossa crítica é contra a democracia representativa. Se tivéssemos uma democracia representativa de verdade, com real participação do povo, não teriam ocorrido os protestos de junho.
TOP – Você reclama de ter sido alçada à condição de liderança, que isso desumaniza e cria um personagem mítico. Vamos humanizar essa conversa: quem é a Sininho?
Sininho – Sou uma militante filha de militantes. Quando eu era pequena, acho que nunca vi o desenho do Pica-pau, minha mãe me botava para ver Charlie Chaplin. Meu nome é por causa de um filme do Carlos Saura. Minha mãe, Rose, é professora aposentada de história e psicanalista. E tive a sorte de ter dois pais: o biológico, Antonio Sanzi, que milita no Sindicato dos Bancários, e o que me criou, Ronaldo, que é um geólogo da Petrobras.
Com 11 anos, saí de Porto Alegre e fui para Macaé, no Rio, e aos 16 eu já comecei a sair de casa. Estudei em colégio luterano, o Nossa Senhora da Glória, em Macaé. Minha mãe era muito ativa na militância, então, fui criada dentro do movimento estudantil da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFGRS), porque, quando eu era pequena, minha mãe estudava e trabalhava ao mesmo tempo. Fui meio que uma criança militante. Eu era cuidada pelo partido, digamos assim. Quando bebê, ficava sempre no colo dos manifestantes durante os protestos. Minha mãe me criou praticamente sozinha até os 6 anos, e nunca deixou de militar por minha causa. Assembleias, atos, passeatas, vivo isso desde pequena.
TOP – Como foi a juventude da Sininho?
Sininho – Comecei a trabalhar com 14 anos. Lavava pratos aos sábados e domingos em uma churrascaria gaúcha em Macaé, chamada Laço Gaúcho. Depois fui para um japonês, o Caras & Japas, mas aí já tinha saído da lavagem de pratos e comecei a ajudar na cozinha. Sempre fui muito agitada. Estava acostumada a ver meus pais atuando politicamente e queria fazer igual na escola: reivindicar, mudar, avançar. Por causa da política e do trabalho, repeti de ano umas três vezes. Fiz em sete uma faculdade que se conclui em três anos. Não era nem questão de nota, era de falta mesmo. Minha mãe quase enlouqueceu e chegou a me tirar da escola particular e me pôs numa pública. Com uma semana na escola, já estávamos organizando o grêmio. Acabei eleita presidente.
TOP – E qual é hoje a sua perspectiva de futuro?
Sininho – Essa é uma questão que a esquerda, principalmente, tem usado muito para nos desautorizar. Como se nós, depois de termos ido para a rua, tivéssemos a obrigação de ter respostas prontas. Mas isso é que é sensacional. A gente tem que construir respostas, não tê-las prontas. A massa tem de construir sua pauta e o seu desenvolver político. Vamos construir algo novo! Sem manipulação, aparelhismo ou direcionamentos.