PUBLICADO NA PUBLICA
“Não posso ter um bebê!!!” Essa foi a mensagem de S., 27 anos, que iniciou a troca de mensagens com um site chamado “Gravidez Indesejada”, que acidentalmente foi parar na caixa de entrada de um jornalista da Pública por causa de um e-mail homônimo. Na resposta, que constava no mesmo e-mail, uma pessoa dizia que, para ajudar a moça, precisaria de seus dados pessoais e gestacionais. O nome do site, tão direto, e seu forte apelo chamaram atenção: o aborto é crime no Brasil, a não ser quando há risco de morte para a gestante, quando a gravidez resulta de estupro ou quando o feto é anencéfalo.
Diagramada em tons de rosa, com fotografias de bancos de imagens, a página contém mensagens do tipo: “Não perca mais tempo, fazer sua própria escolha em uma situação difícil é um direito seu!”. E ainda: “Não corra riscos desnecessários: temos 20 anos de experiência em ajudar as mulheres com uma gravidez indesejada […]. Ajudamos a resolver rapidamente e de forma segura os seus problemas; queremos lembrá-la de que neste momento cada minuto conta muito”. Oferece tratamento personalizado e sigiloso, gratuito, responde a dúvidas sobre o uso de medicamentos abortivos, especialmente o Cytotec – veja aqui a checagem dessas afirmações feita pelo Truco junto a especialistas –, e diz pertencer a uma tal Associação Mulher: “Somos a Associação Mulher, entidade sem fins lucrativos, com sede em diversas cidades do Brasil e do exterior. Ajudamos mulheres com gravidez indesejada, oferecendo atendimento personalizado em um momento difícil que possam estar vivendo”. Não há no site um CNPJ vinculado ou mais informações sobre essa organização. No Google também não é possível encontrar nada mais a respeito dela ou do trabalho que realiza. Mas uma busca ao domínio do site revela o nome de um padre: Hélio Tadeu Luciano de Oliveira. E um e-mail: cambrasildirecaonacional@gmail.com. Com essas primeiras informações em mãos e farejando uma armadilha para as mulheres grávidas – já que não se dizia nada sobre o tipo de ajuda que seria oferecido –, começamos a investigação e marcamos atendimento presencial através do telefone fornecido pelo site. Por eu ter o nome facilmente relacionado às pautas de defesa dos direitos das mulheres, optamos por chamar outra repórter da Pública para a visita. Eu iria como sua acompanhante. Por telefone, após ter insistido em obter todos os seus dados, uma mulher marcou a data e pediu seu telefone para que apenas um dia antes da “consulta” passasse o endereço. A repórter deu seu nome verdadeiro durante as duas visitas que faríamos, e eu, como sua acompanhante, também.
O padre
Hélio Tadeu Luciano de Oliveira é um padre militante pró-vida que, segundo o site do Convívio Emaús (“convívio” é o nome dado a uma atividade de formação organizada pelo Opus Dei que abrange um leque variado de formatos e finalidades), se formou em odontologia e teve sua vocação despertada ainda na faculdade. Fez parte do Movimento Jovens de Emaús em Florianópolis (SC) e, em 2004, foi estudar filosofia e teologia na Espanha, com bolsa integral, no Seminário Internacional de Bidasoa e na Universidade de Navarra, ambos confiados à prelazia do Opus Dei. Logo recebeu a sua ordenação diaconal na Paróquia San Nicolás, em Pamplona, Espanha, e depois retornou à Europa para continuar o doutorado em bioética em Roma. Em sua página pública no Facebook, é possível achar posts contra a “ideologia de gênero”, dezenas de mensagens e imagens contra o aborto (inclusive em casos de estupro) e até fotos de um dia de produção – feita por jovens de uma paróquia de Florianópolis – de fetos de borracha (frequentemente utilizados em manifestações pró-vida ou arremessados contra manifestantes pró-descriminalização do aborto). Também segundo essa entrevista de 2013, ele foi da arquidiocese de Florianópolis e, a pedido do então arcebispo da região, dom Murilo Krieger, empenhou-se nos estudos sobre bioética. É difícil dizer mais sobre o padre Hélio porque, após insistentes pedidos de entrevista por e-mail sem resposta e uma ligação à Arquidiocese de Florianópolis solicitando outro contato, fui informada por um funcionário de que esse era um projeto sigiloso e por isso ele ou outra pessoa da Igreja não falariam a respeito. Na página do Facebook, é possível constatar também seu envolvimento com a Associação Mulher, pois diversos de seus posts e vídeos pedem doações em dinheiro para ajudar a salvar “milhões de crianças do aborto, a sociedade, as mulheres”. Sua ligação com o CAM (aquele cujo e-mail constava no domínio do site do qual falaremos adiante) também aparece em sua página em posts como: “Hoje celebramos a São Josemaría Escrivá de Balaguer, o Fundador do Opus Dei. Recebi hoje muitas graças especiais e estou convencido de que foi pela intercessão desse santo sacerdote. Dentre essas graças está a reabertura do CAM Florianópolis e o crescimento na missão e no amor – quase palpável – de algumas pessoas amigas que confiam cada vez mais em Deus. São Josemaría – rogai por nós!”. Esse site mostra-o ainda como sacerdote da Rede Latino-Americana de CAMs e diz que ele esteve nos últimos encontros representando o Brasil.
A VISITA
Quando, no dia anterior, ligaram para nossa repórter com o endereço da “consulta”, não sabíamos muito bem o que nos aguardava. Preparamos os gravadores e fomos ao local indicado, onde uma feira livre estava sendo desmontada, tomando ruas e calçadas. Nós nos confundimos com a numeração e, enquanto procurávamos – sem dizer o que procurávamos –, fomos abordadas por um feirante que apontou uma casa: “Vocês vão ali, ó”. Caminhamos alguns metros e, surpresas, confirmamos a informação. Havia um número de ferro pregado à parede e outro escrito em uma placa posta ao lado. Tocamos a campainha e uma mulher de cerca de 30 anos abriu a porta. Perguntou quem seria atendida, e eu pedi para acompanhar o procedimento da minha amiga. Em uma rápida passada de olhos pela sala principal, não reparei nas fotos de papas, bispos e santos nas paredes. Minha colega também não. Apenas quando estávamos indo embora as notamos. Imagino que mulheres e meninas que entram na casa desesperadas todos os dias também não devam notar de imediato.
Em uma pequena sala, a voluntária que chamarei de Maria* pega uma prancheta e começa a fazer perguntas para a repórter. Idade gestacional, endereço de sua casa, número de seu documento de identidade, telefone. Ela responde que não se sente à vontade para dar seus dados sem saber que tipo de ajuda receberia ali. Maria diz que aquela ficha era para continuar o tratamento depois. “A gente, que é voluntária, atende as meninas que querem saber mais sobre aborto. Hoje a gente vai conversar sobre o aborto, se você sabe os procedimentos, por que você quer abortar, os riscos que você corre, tudo isso”. Nesse momento eu insisto, no papel da amiga chata, sobre que tipo de ajuda eles oferecem ali, já que não é uma informação clara no site. Após alguma enrolação, ela acaba dizendo que ali eles são “pela vida” e que ela seria informada de todos os riscos que corre ao abortar e que o aborto “é um caminho sem volta”. “Todo mundo acha que aborto é fácil, vai tomando Cytotec, que não tem consequência. Tem consequência gravíssima. A televisão não divulga a mortalidade de aborto. Agora deve estar morrendo menina. A gente recebe toda vez informações sobre mortes de meninas. Morte nessas clínicas de jogarem o corpo fora, as que fazem e voltam para tratar com psicólogos porque têm problemas psicológicos…” Interrompo mais uma vez e pergunto o que era ali e se estava ligado à Igreja. Ela diz que se tratava de uma comunidade em favor da vida que não abraça nenhuma bandeira. Eu insisto e pergunto se é uma ONG, uma clínica, uma igreja. Ela responde que é voluntária e a responsável é uma psicóloga e seu marido, que atendem e dão palestras. A voluntária diz à minha colega que ela pode doar o bebê, que pode, depois do parto, nem olhar para a cara dele, que a assistente social leva embora. “Um bebê recém-nascido com as suas características, branquinho com olho claro, acabou. Recém-nascido tá cheio de pai e mãe querendo.” O discurso de Maria segue truncado em uma mistura de terrorismo psicológico – “você pode morrer”; “podem furar seu útero”; “tem médico que dá tapa na cara”; “jogam seu corpo em qualquer lugar”; “pode pegar infecção, nada é esterilizado”; “eles te mostram o feto morto”; “você pode ser presa”; “dá hemorragia”; “sua consciência vai cobrar” – com histórias muito piores que a dela, em que abortos não foram realizados por sua intervenção, incluindo uma menina de 11 anos estuprada pelo primo. “Mas ela tinha direito ao aborto legal”, provoco. “Mas a mãe ficou com medo por causa do corpo dela, de não aguentar.” E diz que a menina, “coitadinha”, não está entendendo nada e ainda está sendo atendida pelo psicólogo da comunidade. Conta que muitas meninas chegam lá com o dinheiro na mão, achando que vão abortar, e, quando descobrem que não, querem quebrar tudo e saem furiosas. “Vocês atendem muitas mulheres?”, pergunto. “Muitas, três ou quatro por dia, de socialite a garota de programa. Cada caso que você pensa: ‘Meu Deus, o que eu vou falar”. Minha colega diz que vai pensar e que quer conhecer o psicólogo. Maria diz que vai ligar para marcar a sessão com o dr. Luiz. Em sua prancheta, mais uma vez a sigla “CAM”.
O CAM
Em 1989, Jorge Serrano Limón, presidente do Comité Nacional Provida, inspirado por um trabalho que já era desenvolvido nos Estados Unidos, abriu o primeiro CAM na Cidade do México, com a missão de impedir mulheres de abortar. Para atrair as “clientes”, explica o jornalista mexicano Témoris Grecko, autor do livro El vocero de dios, Jorge Serrano Limón y la cruzada para dominar tu sexo, tu vida y tu país (“O porta-voz de Deus. Jorge Serrano Limón e a cruzada para dominar seu sexo, sua vida e seu país), o método era semelhante ao empregado no Brasil: “Colocar anúncios em jornais que lançavam um anzol: “Gravidez inesperada? Existe uma solução para sua gravidez! Garantido: Não te deixamos estéril nem te furamos o útero”, e ao lado o número de telefone da Provida”, conta Grecko em entrevista exclusiva à Pública (que você pode ler na íntegra aqui). No livro, o próprio Serrano Limón descreve para o jornalista o que acontece depois: “Elas nos ligam: ‘Oi, quanto me cobram pelo aborto?’. ‘Não posso te dar informações por telefone, venha’. Damos-lhes um questionário, se faz todo um procedimento e elas desistem de abortar”. O procedimento, explica o livro, inclui práticas em que se afirma que o aborto é “um assassinato e um pecado mortal” e a exibição de filmes com imagens impactantes. O site da rede latino-americana se gaba de ter atendido mais de 25 mil mulheres apenas em 2013, nos 14 países em que atua, nos mais de 90 centros. A maioria das mulheres atendidas está na faixa dos 25 anos e é solteira. Segundo uma planilha obtida pela Pública no site do CAM latino-americano, em vários países o procedimento se repete. No Brasil, a organização tem representantes em Florianópolis, São Paulo, Porto Alegre, Três Barras, Jacareí, Piracicaba e Rio de Janeiro. Ainda segundo o site, 85% das mulheres desistiram de abortar após a “conversa”.
É importante dizer que o fundador do CAM no México, Jorge Serrano Limón, se envolveu em alguns escândalos de corrupção nos últimos anos, relacionados ao CAM, como explica Grecko: “Em 2005, o Ministério do Serviço Público ordenou que Serrano Limón devolvesse 25 milhões de pesos, que ele se recusou a pagar. E conseguiu recursos legais para evitar isso. Em 2012, um juiz federal o condenou a quatro anos de prisão pelo mau uso de 2 milhões 496 mil pesos para o CAM. Em fevereiro de 2016, Serrano Limón foi detido por dois dias por crime de peculato por 25 milhões de pesos (é o mesmo processo). De alguma maneira – provavelmente recebeu apoio de alguém com muito dinheiro –, ele conseguiu pagar fiança e atualmente enfrenta o processo em liberdade”.
No Brasil, é difícil dizer com certeza quem são todos os envolvidos nos CAMs e quem os financia. Além da tentativa frustrada de falar com o padre Hélio, entrei em contato com a CNBB, que me passou o telefone de um bispo que estava na Comissão Episcopal Pastoral para a Vida e a Família e se responsabilizou pela implementação do projeto no país em 2011, mas não consegui contato. Liguei também para os telefones de cada CAM, de cada cidade (contidos nesta planilha obtida no site do CAM Latinoamérica) e no que dizia ser a coordenação nacional. Alguns telefonemas não foram atendidos e, quando foram, as pessoas negaram a relação. O telefone do CAM de São Paulo era o da casa onde fomos atendidas; a psicóloga responsável chegou a atender a ligação, mas disse que estava em uma reunião e não tornou a ligar. O CAM mexicano também não respondeu aos e-mails. Quando se busca pelo endereço da sede do CAM em São Paulo, a casa onde estivemos, segundo o site da Arquidiocese de São Paulo, o CNPJ que aparece vinculado é o de uma associação privada chamada Associação Nossa Senhora Rainha da Paz – Instituto Rhema, cuja atividade principal é psicologia e psicanálise. Seus fundadores, Eneida André Carmona e Luiz Carlos Carmona Reche, segundo esse site, são “fundadores da Comunidade Unidos em Cristo, psicólogos com atuação em clínica e peritos do Tribunal Eclesiástico de São Paulo, orientadores de consagrados e leigos para a Igreja Católica Apostólica Romana”, apesar de o psicólogo ter negado a relação com a Igreja durante a consulta com a nossa repórter.
O TERRORISMO FINAL
Na segunda visita ao CAM em São Paulo, minha colega repórter subiu sozinha as escadas para a sala de terapia com o psicólogo Luiz Carmona enquanto eu fixava o olhar nos santos das paredes da sala de espera e ouvia um homem rezar alto na sala ao lado. Peguei alguns livros para ler – um escrito pelo padre Hélio, sobre regulação inteligente da natalidade. Ela desceria quase uma hora e meia depois, calada e abatida. Já na rua, ela contou que durante a sessão o psicólogo católico mais falou do que ouviu. Muito mais, aliás, segundo seu relato no box abaixo. Mostrou slides impressionantes, fez com que ela segurasse um feto de borracha nas mãos para que sentisse “o peso” do bebê que supostamente carregava no ventre, reforçou tudo o que de horrível poderia acontecer com ela caso decidisse abortar e falou até mesmo sobre as consequências psicológicas do aborto para os homens – uma das quais era a possibilidade de se tornar violento com a companheira. Durante uma hora e meia, a repórter, que poderia ser qualquer mulher ou menina que entrasse ali procurando ajuda, foi submetida a uma sessão de amedrontamento e culpa.
Enviei e-mail para o CAM Brasil em São Paulo dizendo que gostaria de falar com eles pessoalmente. Uma mulher me respondeu e pediu para eu entrar em contato com eles por telefone. Liguei e marquei o atendimento presencial, que é feito com a Maria*, que se apresenta como voluntária e explica que o CAM é uma comunidade pela vida. Depois dessa breve conversa, a primeira pessoa que falou comigo entrou em contato por WhatsApp marcando uma consulta com um psicólogo na sede do CAM.
Luiz, o psicólogo, me atende em uma sala na casa antiga localizada em uma rua pacata no bairro de Santana, em São Paulo. Ele preenche um cadastro com as minhas informações pessoais e se apresenta, explicando a sua função, e diz que o propósito do atendimento é baixar a ansiedade e o medo das mulheres da gravidez. O psicólogo enfatiza que a dúvida e a confusão são responsáveis pela mulher optar pelo aborto e diz que o trabalho realizado pelo CAM é em defesa da vida. Afirma que todas as mulheres nasceram para ser mães, essa é a função biológica destinada ao seu gênero. Depois pergunta sobre o que me incomoda, quais as minhas dúvidas, mas em nenhum momento pergunta como eu me sinto.
Sou questionada sobre a minha religião, digo que sou católica, e em alguns momentos durante a conversa o psicólogo se refere a Deus. Pergunto se o centro tinha algum apoio da Igreja Católica, e ele responde de maneira incisiva que não, mas que a entidade é reconhecida pela Igreja e o centro é mantido com a doação de sócios.
O psicólogo expõe os riscos de interromper a gravidez e me mostra em seu notebook slides com textos e desenhos de bebês, os tipos de aborto e a maneira como são conduzidos. Ele diz que essa apresentação é exibida em diversas universidades, sendo a última a Federal Fluminense, e que viaja pelo Brasil para falar sobre a chamada síndrome pós-aborto e suas consequências na vida da mulher e do homem.
Em uma parte dos slides, mostra-se que as mulheres passam a ter compulsão por álcool e drogas, que se sentem culpadas, com vergonha, depressivas e com transtorno de ansiedade generalizada. Já nos homens, além da compulsão por álcool e drogas, apresentariam obsessão por compras e esporte de risco. Segundo o psicólogo, os homens podem ter transtornos psíquicos e a sua autoimagem fica prejudicada “porque, toda vez que ele olhar para o próprio pênis, ele vai dizer: você entrou na vagina, fez o filho e por culpa desse pênis, por minha culpa, teve o aborto”; a disfunção erétil é uma das consequências citadas.
Luiz me diz que o homem pode apresentar também comportamentos violentos contra a companheira; por exemplo, pode passar a sentir raiva da mulher porque ela foi a responsável “pela conivência dele com o aborto”. O contrário também pode ocorrer: preocupação excessiva com o bem-estar da mulher e obsessão de que ela engravide novamente.
Ele pega o molde de um útero e simula como é feito o aborto. Com a ponta da caneta, ele demonstra como a cureta, instrumento cirúrgico, é introduzida no útero e como ela “cutuca” o embrião até despedaçá-lo. O psicólogo tira um boneco da gaveta com o tamanho aproximado de um feto e pede que eu segure. Esse foi o momento mais marcante de toda a conversa. Pude sentir de perto o constrangimento e a vergonha que outras mulheres passam quando se veem nessa situação. Não satisfeito, ele diz: “Esse bebê vai sangrar, vai sair o sangue, aí ele vai tentar fazer o seguinte: tirar os pedaços. Para ter certeza, ele vai colocar um sugador e vai aspirar os pedaços desse bebê”. Por fim pede que eu procure um padre para me tranquilizar.
Para reforçar a mensagem, menciona exemplos de mulheres que foram até eles com a ideia de abortar e, depois de passar por essa sessão, chamada “gravidez em crise”, decidiram ter o filho. Conta o caso de uma mulher casada com um filho que foi estuprada na rua por dois homens. Ela engravidou do estupro e contou para o marido, que não acreditou e começou agredi-la. A mulher se viu sem saída e foi até o CAM procurar ajuda. Depois de passar pela sessão, se convenceu a continuar com a gravidez – mesmo o aborto em caso de estupro sendo legalizado no Brasil.
Ao finalizar o atendimento, ele pergunta se eu tenho alguma dúvida, digo que não. Em seguida, passa um exercício para os seios que, de acordo com ele, tem como objetivo preparar a gestante para a amamentação do bebê e evitar a maceração dos mamilos. Ele faz a demonstração no corpo dele por cima da camisa. O exercício consiste em segurar a mama por baixo e puxá-la até onde conseguir, torcer e soltar.
Saio dali abatida, pensando nas mulheres que ele ainda vai “ajudar”.
O único relato que encontramos a respeito da armadilha escondida no site “Gravidez Indesejada” no Brasil foi o de uma mulher no site da organização holandesa Women on Web, que oferece ajuda legítima a mulheres que vivem em países onde o aborto legal é limitado. No relato, ela dizia que em um momento de desespero procurou a organização do site “Gravidez Indesejada” e, quando chegou lá, uma senhora tentou de toda forma convencê-la a não abortar, o que a deixou ainda mais desesperada. Em entrevista à Pública, Leticia Zenevich, coordenadora de Projetos na Women on Web, explicou que infelizmente essas armadilhas são uma prática comum em vários países. “Eu não sabia que havia chegado ao Brasil, mas faz sentido. Essas organizações existem no mundo todo, e a ideia é ser uma armadilha mesmo. Muitas vezes eles ficam postergando o atendimento, a mulher vai a primeira vez e eles continuam dizendo que vão ajudá-la, até que as semanas vão passando e o aborto se torne perigoso para a mulher. Ou eles prometem dinheiro e não dão. É um golpe, é de má-fé. Passam filmes, dizem que elas terão câncer, inventam uma síndrome pós-aborto que não tem CID [Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas Relacionados com a Saúde] ou nenhum background científico”. Leticia diz ainda que o site recebeu em 2017 cerca de 40 mil acessos semanais do Brasil, em busca de informações sobre aborto seguro. Vale lembrar que a estimativa da Organização Mundial da Saúde (OMS) é que a cada dois dias uma mulher morre vítima de aborto clandestino no Brasil e que o procedimento de risco (ou seja, feito clandestinamente e de forma precária) é a quinta causa de morte materna. E, como explicou o ginecologista e obstetra Jefferson Drezett nesta entrevista à Pública, a criminalização do aborto tem sido eficaz em matar mulheres pobres porque clandestino não significa inseguro: “O que determina a insegurança do aborto não é ele ser clandestino; é não ter prática, técnica ou ser realizado em ambiente inseguro. A diferença entre as chances de morrer em um aborto inseguro é mil vezes maior. E qual é a diferença, já que no Brasil o aborto é proibido por lei? Depende se a mulher tem dinheiro para pagar por um aborto seguro, mas muito caro, ou se ela é pobre e vai procurar por métodos inseguros. Acaba-se criando uma desigualdade social, uma perversidade, porque uma mulher que tem um nível socioeconômico bom tem acesso a clínicas clandestinas, que não são legalizadas, mas são seguras. Esse aborto seguro pode custar mais de US$ 2 mil, enquanto um aborto inseguro pode custar R$ 50. A criminalização do aborto impõe à mulher pobre a busca pelo aborto inseguro e clandestino e para as mulheres ricas a busca pelo aborto clandestino e seguro”.
Em Portugal, por exemplo, onde o aborto é legalizado há mais de dez anos, desde que a prática foi descriminalizada o número de mulheres que morreram em decorrência do procedimento caiu e está em zero desde 2012.
Para Valeska Zanello, professora do Departamento de Psicologia Clínica da Universidade de Brasília e coordenadora do grupo de Estudo Saúde Mental e Gênero, submeter mulheres em situação de extrema vulnerabilidade a abordagens como essas que vivenciamos pode ser considerado tortura psicológica. Ela acrescenta: “Em geral, as pesquisas pró-vida enfatizam os impactos para a saúde mental em casos de aborto. E são pesquisas muito mal feitas porque comparam mulheres que tiveram filhos e queriam ter com mulheres que não queriam ter filhos e fizeram aborto. O ideal seria comparar mulheres que não queriam ter filhos e tiveram com mulheres que não queriam ter e não tiveram. Tem um problema metodológico. Você ter um filho sem desejar é que tem impacto sobre a saúde mental. A maternidade é uma tarefa pesada para a mulher na nossa cultura. Desejar estar nesse lugar é fundamental para a gente pensar os impactos. No Brasil, quando uma mulher deseja não ter filhos, ela não tem os meios legais de concretizar essa opção. A maioria das mulheres acaba por fazer o aborto de forma clandestina. Isso as torna totalmente vulneráveis. É uma tendência dizer que o aborto é um grande drama, mas o mais difícil é a criminalização. Muitas mulheres que abortaram e que eu já atendi relatam que se sentem como se fossem criminosas. Como se elas tivessem o tempo todo que tomar cuidado com a polícia, como se fossem traficantes, assassinas. Então são mulheres que estão em um alto grau de vulnerabilidade e muito suscetíveis à manipulação. E existe o mau uso da religião, que não se dá apenas via clandestinidade, porque até nos serviços de abortamento legal eu já tive denúncias de que profissionais religiosos tentam convencer mulheres a não abortar. A ONU já se manifestou afirmando que negar o aborto em casos legais pode ser considerado tortura ou tratamento cruel, desumano ou degradante”. Sobre a conduta dos psicólogos, Valeska diz que merece investigação por parte do Conselho Federal de Psicologia.
Em tempos de retrocesso, em que PECs como a 181/15, que insere na Constituição a proibição do aborto em todos os casos, inclusive os já previstos hoje pela legislação, avançam no Congresso e ameaçam os poucos direitos já conquistados pelas mulheres, armadilhas como essas promovidas pelo CAM são um desserviço por expor mulheres e meninas vulneráveis a tudo isso que presenciamos. Jamais esqueceremos o que ouvimos ali. Retomo a pergunta feita pela minha colega repórter ao sair da consulta: “Eles enfatizam que ali estão pensando na vida. Mas na vida de quem?”.