Reizilan dos Santos, músico de 64 anos, luta na Justiça para que a mãe, Creusa Francisca do Santos, seja reconhecida como filha adotiva do sambista Angenor de Oliveira, o Cartola (1908-1980) – e ele, como neto. Os avós de Reizilan, pais biológicos de Creusa, eram amigos do casal Deolinda e Cartola. Eles a adotaram após o falecimento da mãe dela, em 1933, quando Creusa tinha cinco anos. A adoção, porém, não foi passada para o papel.
Em 1937, Angenor já levava a filha adotiva para cantar em rádios como Transmissora e Roquete Pinto. “Ela interpretava suas composições, o que era comum nesta época. Quando Villa Lobos foi à quadra da Mangueira conhecer meu avô, quem cantou as composições de Cartola para ele foi minha mãe”, conta Reizilan ao DCM.
Quando a carreira do sambista começou a decolar, na década de 1960, Creusa não reparou que estava na hora de seguir seu próprio caminho, depois de anos fazendo shows com Cartola em espaços como a Boate Jogral, em Ribeirão Preto, o Zicartola e o Teatro Opinião, ambos no Rio de Janeiro. “Minha mãe poderia ter gravado seu próprio disco, pois tinha ao seu lado Nelson Cavaquinho, Herivelto Martins e seu próprio pai, mas continuava à sombra dele, não conseguia caminhar com suas próprias pernas. Quando ela acordou, foi tarde demais”, lamenta Reizilan.
Creusa gravou as faixas “Ensaboa” e “Sala de Recepção”, do disco “Cartola” (1976), mas seu filho afirma que a sambista Clementina de Jesus cantava no lugar dela ao vivo por “motivos pessoais e comerciais”. Ele observa que ,”em nenhum momento, Cartola exerceu seu poder e seu papel de pai para defendê-la, deixando que a excluíssem do processo sem levantar um dedo sequer para protegê-la”.
Reizilan acusa Angenor de ter “usado” Creusa desde criança. “Talvez naquele momento ele não precisasse mais dela em shows”, diz o músico, ressaltando que sua mãe não recebeu nada por ter participado do disco. “O lançamento seria a chance de Cartola retribuir tudo pelo que eles haviam passado até aquele momento, pois ele tinha conseguido vencer como compositor e como cantor”.
Caso tivesse levado a filha para cantar “Ensaboa” e “Sala de Recepção” em apresentações como a do programa Discoteca do Chacrinha, Cartola poderia ter contribuído para que ela iniciasse uma carreira solo. Contudo, o sambista teria dado “carta branca” para que a terceira personagem da história, Clementina de Jesus, que tinha grande visibilidade na mídia, cantasse no lugar de Creusa os lançamentos do disco de 76, o que foi um sucesso.
Apenas em 1982, dois anos após a morte de Cartola, Creusa foi convidada para lançar as canções do LP de 1976 na coleção “História da Música Popular Brasileira”, pela Abril Cultural S/A. “Esse movimento foi necessário para tirá-la de casa e dar um novo alento em sua carreira artística”, lembra Reizilan. Em 1984, ela participou do LP “Cartola entre amigos”, produzido por João de Aquino, e interpretou a canção “Rolam dos meus olhos” (Cartola), além de participar do coro nas faixas “Não” (Cartola e Aluísio Dias), “O samba do operário” (Cartola, Alfredo Português e Nelson Sargento) e “Deus te ouça” (Cartola e Paulo da Portela).
O neto de Cartola tem memórias vívidas do avô tocando violão em seu barraco na Rua Visconde de Niterói (Mangueira), esquina da Travessa Saião Lobato, “com seu chinelinho e o seu cigarro”. Reizilan conta que o samba sempre esteve no coração da família. Desde menino, os pais o levavam para o botequim da Efigênia, onde cantavam e dançavam a noite toda. “Fui moldado e fundido ouvindo música boa. Primeiro ouvi meu avô, depois meu pai e mais tarde os compositores da Mangueira, como Zé da Gaia, Leci Brandão, Padeirinho, Jurandir, Batista, Darcy e Hélio Turco”, diz ele.
Daí que surgiu a inspiração para aprender a tocar violão e seguir uma carreira musical. No entanto, Reizilan já estava ciente de que ser neto de Cartola não era promessa de sucesso. Pelo contrário, ele afirma que isso o “atrapalhava, pois as pessoas muitas vezes ficavam desconfiadas”, como acontecia com a última esposa de Cartola, Dona Zica. “Já fui convidado a me retirar da casa do meu avô, cheguei a ser acusado de tê-lo deixado passar necessidade quando ele saiu da Mangueira em 1956”.
Foi um período difícil na vida do sambista, em que ele havia perdido o prestígio no morro da Mangueira, decidindo se mudar para uma favela no bairro do Caju, com uma mulher chamada Donária. Reizilan diz que foi acusado injustamente de não tê-lo ajudado, pois tinha apenas um ano de idade na época. Ele alega que era impedido por Dona Zica de ver seu avô quando ia visitá-lo. “Zica ficava numa cadeira de balanço em frente à porta da entrada, me colocava sentado em uma cadeira ao lado dela e ficávamos batendo papo. O tempo passava e ninguém ia avisá-lo da minha presença, parecia que ele não morava ali. São momentos tão tristes que eu preferia esconder dentro de mim”, revela.
O que deixa o neto de Cartola mais pesaroso é o fato de não ter convivido tanto com o avô quanto podia. Afinal, veio dele o estímulo para Reizilan virar músico. “Os dias em que eu ia visitá-lo com minha mãe eram muito corridos, perdi o convívio”, lamenta. “Não pude conhecer seus novos amigos, músicos talentosos, tantos fatos históricos acontecendo e eu crescendo em outro mundo. Poderia ter aprendido mais, pois minha inspiração de tocar violão vem dos tempos de criança em Mangueira, quando eu tinha uma relação com ele”.
A relação entre os dois foi desgastada ao longo dos anos, e o lugar de Reizilan foi “ocupado por pessoas que se apoderaram da obra de Cartola”, diz ele sobre Dona Zica e seus familiares. “Hoje só sinto tristeza ao lembrar desses momentos, vendo o distanciamento ao qual eles me impuseram. Nem sei se meu avô em vida soube que eu havia estado em sua casa para vê-lo inúmeras vezes”.
Apesar de não culpar ninguém por sua mãe ter sido “apagada” da história, Reizilan condena o comportamento dos familiares de Dona Zica. “Eles dizem que são verdadeiros netos de Cartola, e que eu estou querendo viver na aba do chapéu do avô deles. É como se eles tivessem nascido em Mangueira e vivido tudo que eu vivi quando criança”.
Reizilan briga para ser reconhecido como neto de Cartola por uma questão de honra, para zelar pela memória da mãe. Mesmo sem ter criado um vínculo com ele e guardando tantas lembranças negativas acerca daqueles que o rodeavam, o músico afirma que seu passado, presente e futuro foram revirados. “Não posso mentir e dizer que isso não aconteceu, que não sou neto dele. Luto para resgatar o nome da minha mãe junto ao nome dele, e resta no futuro apagar essas memórias ruins”.
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O DCM está aberto para publicação da manifestação de todos os citados neste depoimento.