Originalmente publicado em JOTA
Por Carla Egydio e Thaís Dantas
O orçamento público tem como uma de suas principais finalidades a efetivação dos direitos fundamentais, sobretudo os direitos sociais que demandam alocação de recursos nas políticas públicas que os garantem.
Assim, defender a construção de um Estado de bem estar social é defender um orçamento público promotor de direitos. O atual contexto social e econômico brasileiro, marcado pelo aumento das desigualdades sociais, da fome, da permanência do trabalho infantil, mostra a urgência do debate orçamentário voltado à garantia de direitos, especialmente daqueles relacionados à infância e adolescência. Há que se analisar se orçamento público está de fato sendo pensado, planejado e executado para sua razão de ser.
A Convenção sobre os Direitos da Criança e do Adolescente de 1989, ratificada pelo país em 1990, prevê, no artigo 4º, que os Estados Partes devem adotar todas as medidas necessárias à implementação dos direitos de crianças e adolescentes, inclusive a utilização de recursos disponíveis.
Já a Constituição de 1988 confere, por meio do artigo 227, aos direitos de crianças, adolescentes e jovens absoluta prioridade, o que deve aplicar-se também no orçamento público, conforme previsto no art. 4º, parágrafo único, alínea d do Estatuto da Criança e Adolescente, que determina que a garantia da prioridade compreende a destinação privilegiada de recursos públicos nas áreas relacionadas à proteção da infância e da juventude.
A Constituição de 1988, também chamada de Constituição Cidadã, compreende o orçamento público a partir desta finalidade principal – a efetivação de direitos –, instituindo regras que buscam conferir maior eficiência, transparência e participação social ao longo de toda a discussão orçamentária, desde a elaboração e aprovação pelo Congresso Nacional, até a fiscalização da implementação.
Apesar dos avanços na transparência e fiscalização, a análise do financiamento de políticas públicas que impactam a vida de crianças e adolescentes no país é muito complexa.
Há diversos fatores que dificultam esta análise, como a transversalidade dessas políticas, a divisão de competências entre os entes federados, a inexistência de um sistema classificatório de recursos destinados exclusivamente à infância e adolescência, e, também, a dificuldade imposta pela existência de diversas políticas públicas não exclusivas para infância e adolescência, mas que garantem direitos de dessa população.
Ademais, a previsão orçamentária não necessariamente se efetiva, assim, é fundamental ampliar a transparência sobre orçamento, alocação e execução dos recursos, para possibilitar o controle social, tanto pela população quanto dos órgãos responsáveis, como é o caso dos conselhos de direitos.
Acompanhar o orçamento público de perto é fundamental, especialmente no contexto em que políticas e serviços vêm sendo precarizadas no país. A título de exemplo, o relatório “O Brasil com baixa imunidade: Balanço do Orçamento Geral da União 2019”, ao analisar a Política Nacional de Direitos da Criança e do Adolescente, que contempla o Sistema de Garantia de Direitos, Conselhos de Direitos da Criança e do Adolescente, Sistemas de Informação (Sipia), Conselho Tutelar, Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo (Sinase), Atendimento a crianças e adolescentes em situação de violência sexual, Enfrentamento da violência letal pelo Programa de Proteção de Crianças e Adolescentes Ameaçados de Morte (PPCAM), Direito à convivência familiar e comunitária, Atendimento a crianças e adolescentes em situação de vulnerabilidade e com direitos violados, ameaçados ou restritos e Erradicação do trabalho infantil e Proteção ao adolescente trabalhador, aponta falta de investimentos.
Cabe ressaltar que não se trata de um corte pontual, mas uma redução sistemática do investimento social – que contempla as áreas de organização agrária, cultura, educação, trabalho, saúde, previdência social, habitação, saneamento, assistência social – de mais 28% nos últimos seis anos.
A despeito de uma realidade social extremamente desigual, a escolha política brasileira tem sido a priorização das despesas financeiras, como pagamento da dívida pública, em detrimento do financiamento de políticas públicas responsáveis pela efetivação de direitos básicos à população.
Um exemplo emblemático dessa opção política é a Emenda Constitucional 95 de 2016, que instituiu o Novo Regime Fiscal no âmbito dos Orçamentos Fiscal e da Seguridade Social da União, o chamado teto de gastos públicos.
A sua aprovação é a escolha pelo desinvestimento nas áreas de educação e saúde, com diversos impactos na vida de crianças e adolescentes, como, o aumento da taxa de mortalidade infantil, por conta de um incremento estimado de 20 mil óbitos evitáveis até 2030.
Ao longo deste semestre, o Congresso Nacional terá a oportunidade de enfrentar a discussão orçamentária em torno da Lei Orçamentária Anual (LOA) com uma lógica que valorize a vida e garanta direitos.
Por mais que não tenhamos nenhum indício de alteração no cenário político e nas escolhas orçamentárias realizadas nos últimos anos, deve-se convocar os parlamentares a aprovar uma LOA que garanta direitos, que respeite a razão de ser do orçamento público em um Estado Democrático de Direito, que reduza desigualdades e, por fim, que obedeça a regra da absoluta prioridade dos direitos de crianças e adolescentes prevista no artigo 227 da Constituição Federal de 1988.
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