No Brasil de 2015, século XXI, um cidadão está sob censura. Há dois anos Ricardo Fraga está proibido de se pronunciar a respeito da construção de três torres residenciais em seu bairro. Trata-se de um dos primeiros casos registrados de censura judicial a protestos em redes sociais no país.
Morador da Vila Mariana, Ricardo questionava a verticalização excessiva da cidade, promovia reflexão sobre o espaço urbano e organizou protestos pacíficos contra a construção das torres. Fundou assim o movimento “O outro lado do Muro”, no qual pessoas eram convidadas a subir em uma escada, olhar o enorme terreno por onde antes passava o córrego Boa Vista (já canalizado) e estimuladas a desenharem o que imaginariam ser a finalidade ideal. Claro que ninguém desejou prédios. Um abaixo assinado coletou 5 mil assinaturas contrárias à obra. A construtora Mofarrej não gostou da brincadeira (e até tem esse direito), mas resolveu entrar na justiça e censurar Ricardo.
Em 6 março de 2013 uma liminar proibiu Ricardo Fraga de publicar no Facebook qualquer comentário sobre a construtora, nem mesmo mencionar os prédios Ibirapuera Boulevard, nem de participar de qualquer protesto num raio menor que 1 km das torres. A página “O outro lado do Muro” na rede social também foi cassada. Liberdade de expressão e liberdade de manifestação, garantidas pela Constituição Federal, ignoradas e atropeladas. Por que?
Na última sexta-feira, um grupo de manifestantes reuniu-se em frente aos prédios da Mofarrej com o propósito de pressionar os desembargadores de segundo grau, já que o juiz de primeiro grau confirmou a censura imposta. Ricardo Fraga está amordaçado há dois anos.
Qual a fundamentação para tal medida extrema?
“A fundamentação jurídica dos advogados da construtora diz respeito ao direito de propriedade e livre iniciativa em comercializar as torres. Mas o juiz, ao se deparar com um caso desses, precisa balancear os dois direitos pleiteados: o direito à livre iniciativa da construtora e o direito de liberdade de expressão do Ricardo. E ele (o juiz) deveria analisar que o Ricardo não está com nenhum interesse individual nem com intenção de causar danos econômicos. O que se deseja é pautar uma discussão sobre espaço público, de urbanização, algo muito maior do que é questionado pela construtora. Por isso não havia necessidade alguma de sentenciar essa penalização e sobretudo da forma desproporcional como ela é”, diz Camila Marques, advogada e membro da ONG Artigo 19.
“Um outro ponto interessante dessa decisão judicial é que ela é muito genérica, dá margem a muitas dúvidas. Ele não pode postar apenas no Facebook ou também em outras redes sociais? A multa de 10 mil reais pode ser aplicada se ele ‘curtir’ um post relacionado na página de outra pessoa ou só se manifestar-se ativamente? Houve inclusive um retrocesso pois o judiciário havia reduzido a distância para a qual Ricardo não pode fazer qualquer manifestação acerca do empreendimento em um quarteirão mas recentemente esse raio voltou para um quilômetro. Que eu tenha conhecimento, trata-se do primeiro caso de proibição de protesto online”.
Presente ao protesto, o deputado estadual Carlos Giannazi declarou: “Isso é um retrocesso para a democracia brasileira, para a luta em defesa da cidadania e até para a própria justiça. Isso macula a justiça brasileira, é uma excrescência jurídica. Retrocedemos 60 anos, portanto temos que dar respostas. A sociedade não pode aceitar porque a censura ao Ricardo é uma censura aos movimentos sociais e aos seus militantes. É uma volta à idade média essa decisão da justiça que deve ser repudiada.”
A decisão realmente parece abrir um precedente perigoso aos movimentos sociais e ativistas. “Não é só ele que está sendo discriminado e ofendido mas todos nós, toda a sociedade brasileira e todos os movimentos sociais lutadores”, completou Giannazi.
Em 2013 Ricardo Fraga candidatou-se ao conselho consultivo da Vila Mariana e foi eleito com o maior número de votos da região. Ele falou ao DCM:
O que representa estar censurado em 2015?
Enquanto houver divisão de classes os detentores do capital promoverão censura aos que os incomodarem efetivamente. Assim a história tem nos mostrado. Em países onde a democracia e a participação popular estão mais consolidadas e em que a desigualdade social não se mostra tão acentuada quanto a nossa, a prática da censura como a que sofro é mais difícil de ocorrer. Portanto, estar censurado em 2015 representa reconhecer o quanto ainda somos incipientes em termos de valorização da participação social, o quanto os direitos coletivos e difusos ainda são ignorados pelos poderes constituídos, sobretudo o judiciário.
Com as torres já prontas e à venda, por que acredita que a proibição permaneça?
Embora as torres estejam praticamente prontas, muitas unidades ainda não foram comercializadas. Creio que enquanto houver unidades à venda, lutarão para que a censura permaneça. Quando não mais houver, creio que o objeto da ação se perca. De qualquer forma, judicialmente, a sentença de primeiro grau dada em outubro de 2014 não estipula prazo, o que significa que estaria proibido ad eternum.”
Preocupa-se que essa censura possa abrir um precedente e alcançar outros movimentos sociais?
Certamente que sim. É um perigoso precedente que pode ser usado por outros juízes como referência em futuras decisões, atingindo frontamente os direitos dos movimentos coletivos. Prioritariamente é por esta razão que recorri da sentença de primeiro grau, tendo em vista que o dano ocorrido ao movimento ‘O outro lado do muro’, aos seu objetivos, foi consumado com a liminar dada em 6/3/13. Houve uma ruptura clara e uma violência pessoal a mim.
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O que acontece com Ricardo Fraga é preocupante. A causa era evidentemente coletiva e o direito a ser preservado, o meio ambiente, de caráter difuso. Em locais que respeitam direitos coletivos e difusos, uma ação como esta dificilmente iria adiante. Mas por aqui prevaleceu uma coerção individual intimidatória. Ricardo Fraga está obrigado a permanecer calado muito provavelmente por ser considerado um “líder”. É curiosa essa obssessão das autoridades com a procura por líderes, como se a massa só se organizasse através deles e jamais de maneira espontânea. Sabia o leitor que na maior parte das manifestações se um líder não se identifica e apresenta à polícia o roteiro que a marcha irá seguir o que se ouve das autoridades fardadas é: “sem liderança, não vão sair daqui”? E tome borrachada.
A ação contra Ricardo Fraga já seria um capítulo nefasto se pertecente a eras passadas. Em 2015 é de estarrecer.