Publicado originalmente na Rede Brasil Atual:
A conexão entre capitalismo e reforma agrária surgiu como uma aula de história no programa Entre Vistas, com o coordenador do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) João Pedro Stedile, exibido na quinta-feira (27), na TVT.
“Não falta mostrar que a reforma agrária é uma necessidade do sistema capitalista?”, perguntou o apresentador Juca Kfouri.
“No passado, a democratização da propriedade da terra foi o sustentáculo do desenvolvimento das forças produtivas”, concordou Stedile. “Até 1860, a economia colonial brasileira produzia a mesma coisa que a economia colonial norte-americana. Aqui no Brasil nós somos vítimas de 400 anos de escravidão. Então, a coroa dava as terras em concessão de uso para grandes capitalistas que vinham da Europa. Compravam escravos que trabalhavam para eles de graça, e assim fizeram as fortunas que estão aqui em São Paulo, inclusive”, afirmou.
“Lá nos Estados Unidos emergiu uma burguesia industrial no norte, e eles perceberam que o desenvolvimento do capitalismo é incompatível com a escravidão, porque os trabalhadores escravos não têm renda”, explicou ainda o coordenador do MST.
“E eles resolveram com a Guerra da Secessão. E quando Lincoln percebeu que ia ganhar a guerra, ele decretou, e o Congresso aprovou, uma lei de reforma agrária. O nome em inglês seria o direito de habitação, olha que nome bonito para uma lei de reforma agrária”, observou.
“E qual foi o exemplo que o Lincoln nos deu para a reforma agrária e que os nossos burgueses idiotas aqui não copiaram?”, indagou Stedile. “Primeiro, todo cidadão que morasse nos Estados Unidos, todos, tinha direito a ter 100 acres, que equivale mais ou menos a 67 hectares, ou seja, você quer ir lá trabalhar na terra? O estado garante 67 hectares. No entanto, você tinha que morar e trabalhar”, relatou.
“E essa distribuição foi autônoma. Por isso que se vê em filmes aquelas caravanas de carroças, as pessoas iam marcando os 100 acres. Depois de dois ou três anos, você comprovando que morasse lá, vinha o Estado e dava o título”, destacou.
Três milhões de beneficiados
“Essa foi a reforma agrária e o efeito disso é que vencida a guerra, e com o fim da escravidão e distribuindo as terras para todo mundo, eles beneficiaram três milhões de famílias produtoras. Isso criou um mercado consumidor para a indústria do norte (dos Estados Unidos) fantástico. Por isso tiveram de desenvolver as linhas de trens para levar insumos e trazer de volta a produção – o gado, o trigo… E os Estados Unidos se transformaram ao mesmo tempo em uma potência industrial e agrícola em 30 anos”, disse.
“Até 1860, Brasil e Estados Unidos tinham economia do mesmo tamanho, então é verdade”, lembrou Stedile.
“Só que agora nós perdemos já o bonde da história, ou seja, aqui no Brasil eles não quiseram fazer o desenvolvimento da indústria baseado no mercado interno. A última vez que tivemos chance disso foi em 1964, quando o saudoso Celso Furtado, na primeira grande crise do capitalismo industrial brasileiro chegou para o presidente João Goulart e disse, como ministro do Planejamento: ‘presidente eu tenho a solução, é uma reforma agrária’”.
O projeto de Furtado teria sido uma reforma agrária para desenvolver a indústria. “E o Celso Furtado mandou para o Congresso projeto de lei no dia 13 de março, depois daquele famoso comício lá da Central do Brasil. O projeto era meio parecido com o do Lincoln e dizia que 10 km ao lado de cada BR, de cada ferrovia, de cada lagoa ou açude artificial, o governo iria desapropriar todas as áreas acima de 500 hectares. E não há nada até hoje no Brasil que comprove que o sujeito com 500 hectares não fique rico, portanto, pode abrir mão dos outros. Então, acima de 500 hectares seriam desapropriados todos, independentemente de índices de produtividade. E entregues 15 hectares para cada família”, explicou Stedile.
“Olha a sabedoria, ao longo de 10 hectares longe da BR. E o governo ia puxar o fio elétrico em todos os assentamentos. Atrás do fio elétrico viria a máquina de lavar, a televisão, toda a indústria de eletrodomésticos. E com isso desenvolver a indústria do Brasil. E qual foi a resposta que a burguesia de São Paulo deu? O golpe de 1964, poucos dias depois.”
Segundo o líder do MST, agora a reforma agrária já não é mais para resolver o problema da indústria, mas é uma questão de democracia e de alimentos saudáveis. “Porque a grande propriedade, o agronegócio, como é chamado, não produz comida, mas mercadoria para se ganhar dinheiro. Eles não estão preocupados com a nossa saúde, mas em dar lucro. E quando liberarem a Cannabis para fins farmacêuticos, pode escrever aí, os produtores do agronegócio vão plantar maconha para fazer remédio”, concluiu.