Originalmente publicado por CONJUR
Por Danilo Vital
A oferta de medicamento, embora essencial à concretização do Estado Social de Direito, não pode ser conduzido à margem do figurino constitucional, com atropelo dos pressupostos mínimos de segurança visando o consumo, sob pena de esvaziar-se o próprio conteúdo do direito fundamental à saúde, disposto no artigo 196 da Lei Maior.
A lei foi editada em 13 de abril de 2016, antes da autorização da distribuição da pílula pelo Executivo, e suspensa por liminar concedida pelo Plenário do STF, em 19 de maio do mesmo ano. A ação direta de inconstitucionalidade foi ajuizada Associação Médica Brasileira (AMB), diante do “desconhecimento amplo acerca da eficácia e dos efeitos colaterais” da substância em seres humanos.
Com esse entendimento e por maioria de votos, o Plenário virtual do Supremo Tribunal Federal declarou a inconstitucionalidade da Lei nº 13.269/2016, que permitia a distribuição da da fosfoetanolamina, conhecida como “pílula do câncer”.
A existência da chamada pílula do câncer criou enxurrada de processos no Judiciário. A droga era distribuída a algumas pessoas no município de São Carlos (SP), onde um professor aposentado da USP estudava seus efeitos no Instituto de Química. Em 2014, uma portaria do instituto proibiu que pesquisadores distribuíssem quaisquer substâncias sem licenças e registros.
Quando uma liminar do ministro Luiz Edson Fachin determinou o fornecimento assim mesmo, uma série de pessoas passou a cobrar medida semelhante. Vários juízes determinaram que a Fazenda de São Paulo e a USP fossem obrigadas a disponibilizar a substância, até que o Órgão Especial do Tribunal de Justiça cassou as decisões.
Respeito à ciência
Em julgamento encerrado na sexta-feira (23/10), o Supremo deu fim à discussão. Relator, o ministro Marco Aurélio destacou que a esperança que a sociedade deposita nos medicamentos, sobretudo aqueles destinados ao tratamento de doenças como o câncer, não pode se distanciar da ciência.
“Foi-se o tempo da busca desenfreada pela cura sem o correspondente cuidado com a segurança e eficácia dos fármacos utilizados. O direito à saúde não será plenamente concretizado se o Estado deixar de cumprir a obrigação de assegurar a qualidade de droga mediante rigoroso crivo científico, apto a afastar desengano, charlatanismo e efeito prejudicial”, apontou.
Para ele, ao aprovar a lei, o Congresso permitiu a distribuição de remédio sem controle prévio de viabilidade sanitária, omitiu-se no dever constitucional de tutelar a saúde da população. A atitude foi considerada, no mínimo, temerária pelo relator.
A aprovação do produto no órgão do Ministério da Saúde é exigência para industrialização, comercialização e importação com fins comerciais, como dispõe o artigo 12 da Lei nº 6.360/1976. A partir do registro é que a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) vai poder monitorar a segurança, eficácia e qualidade terapêutica. “Ausente o cadastro, a inadequação é presumida”, concluiu.
Só para pacientes terminais
Seguiram o relator a ministra Cármen Lúcia e os ministros Alexandre de Moraes, Ricardo Lewandowski, Luís Roberto Barroso e Luiz Fux. Ficou vencido o ministro Luiz Edson Fachin, acompanhado pelos ministros Dias Toffoli e Gilmar Mendes.
Para a divergência, não há inconstitucionalidade nos dispositivos da lei que se limitam a autorizar o uso da substância fosfoetanolamina, pois o uso privado de substâncias, ainda que apresentem eventuais efeitos nocivos à saúde humana, insere-se no âmbito da autonomia privada e está imune à interferência estatal em matéria penal.
“A rigor, o uso da substância fosfoetanolamina é permitido se não há lei que o proíba”, apontou o ministro Fachin. Isso porque a competência da Anvisa para fazer o controle de aprovação das medicações é dada pelo legislador e não é privativa. Assim, nada impede que determinada substância viesse a ser regulada por meio de lei.
Assim, a resposta à pergunta se o Congresso poderia autorizar a produção de substância que potencialmente pudesse afetar a saúde humana, dispensando o registro é: depende.
Quando não houver outras opções eficazes, é possível a relativização do controle. Isso ocorreria, por exemplo, no caso de pacientes terminais. No caso de ainda haver outras opções de tratamento, essa autorização não seria possível.
Com isso, o voto da divergência foi para conferir interpretação conforme ao artigo 2º da Lei 13.269/2016, para reconhecer que o uso da fosfoetanolamina sintética restringe-se a pacientes terminais