Por Aury Lopes Jr. e Alexandre Morais da Rosa, publicado originalmente no Conjur
A cada semana, quando se entra em sala de aula, os alunos perguntam sobre a estabilidade das noções básicas do sistema processual penal. Em apertada maioria, toda a dimensão de compreender a presunção de inocência se altera. Um ministro do STF pode modificar as noções da função dos recursos (especial e/ou extraordinário). Diante da TV Justiça, com transmissões on-line, a perplexidade em face dos argumentos faz com que os alunos, a cada semana, perguntem, dentre outras coisas: o que o interdito proibitório tem a ver com o processo penal?
Neste caldo Supremo, temos ainda os julgamentos das turmas isoladas. É o STF organizado por duas turmas, que têm competência também para julgar Habeas Corpus em matéria penal. Assim, contraditoriamente, a depender da sorte da distribuição dos Habeas Corpus, na mesma semana as posições são díspares. Certa (in)estabilidade, a nosso juízo equivocada, somente quando se joga/afeta o Habeas Corpus ao Plenário. Ainda assim, a depender de se tratar da mesmíssima discussão em ação de descumprimento de preceito fundamental ou Habeas Corpus, surgem posicionamentos ambíguos. Com isso tudo, a mais alta corte de Justiça se coloca no impasse.
O paroxismo do atual estado da arte é que são invocadas opiniões do senso comum, equivalências com o processo civil, analogias de causar perplexidade, enquanto as discussões travadas nos tribunais de direitos humanos e pela doutrina mais progressistas são relegadas a segundo plano. Mas isso não é o pior.
O mais desesperador para os alunos e professores é que as discussões do STF deveriam ser qualificadas e metodologicamente informadas. Afinal de contas, alguém pode responder se o artigo 283 do CPP está em vigor? Os votos são longos, maçantes, repetitivos e sem enfrentar as questões principais. Perde-se na verborragia de que “tenho para mim”, nas sutilezas de um combate contra os mais variados fantasmas. Os debates viram discursos sobre impunidade, argumentos pragmáticos e depois se vota, cada um separadamente, sem que as questões relevantes sejam enfrentadas de frente e diretamente.
Evidencia-se uma imensa “crise identitária da jurisdição penal”, pois o julgador não é capaz de responder — de forma consciente e segura — a uma pergunta básica: afinal, a que expectativas deve corresponder o julgamento criminal? Será que é papel do STF corresponde às expectativas da opinião pública? Será que um ministro pode deixar de “votar” a questão jurídica para fazer um discurso panfletário-punitivista para corresponder às expectativas da opinião pública (ou seria publicada?) criadas em reducionistas discussões de “bar”? Esqueceram que o papel do julgador penal — especialmente em uma corte (que almeja ser) constitucional — é o de buscar a máxima eficácia do sistema de garantias individuais da Constituição, ainda que para isso tenham que decidir contramajoritariamente? Direitos fundamentais são a garantia do “um” contra “todos”, por elementar. Será que o STF esqueceu disso?
Sem falar na “aula prática” de solipsismo e decisionismo que poderia fazer com que Lenio Streck fugisse de vez para as montanhas e estocasse alimentos… Recordemos, por exemplo, que quando este país foi descoberto, em 1500, o mundo do Direito Processual já sabia o que era “trânsito em julgado”. É um conceito jurídico-processual com história e doutrina. Não é, e nunca será, o STF quem irá dizer o que é trânsito em julgado e tampouco está autorizado, a título de intérprete “da Constituição”, a ressignificar a ponto de desnaturar a própria base conceitual de algo que não lhe pertence! Existem, obviamente, limites para a função de “intérprete” da Constituição, de modo que o STF não pode chamar uma garrafa de carro, mas é isso que está fazendo. Até poderíamos discutir se uma “garrafa” pode virar uma “arma”, quando jogada na cabeça de alguém, mas jamais se poderá dizer que é um carro… Ou seja, existe limite para interpretar e atribuir sentidos.
Isso sem aprofundar na falácia comparativista, pois, para se invocar institutos de Direito Comparado, é preciso respeitar certos limites, entre eles o estabelecido entre sistemas completamente diferentes, como pode ser a base civil law da common law. Seguindo no capítulo “execução antecipada da pena” da novela mexicana, não interessa, em absolutamente nada, o que diga a Constituição americana ou francesa, mas, sim, o que diz a Constituição da República Federativa do Brasil!
Nesse aspecto, o próprio STF mandou o projeto Cesar Peluso, em que articulava uma nova estrutura recursal interessante, mas por lei, e não porque seis decidiram assim e pronto. O perigo é que amanhã os mesmos seis podem reescrever a Constituição para além dos limites indicados nas atas da constituinte e do texto normativo porque decidiram promover a lógica das “medidas estruturantes” à brasileira. Arvoram-se em um poder que não têm. Mas, quando seis dizem que têm poderes Supremos, a coisa anda mal.
Por fim, não se pode deixar de mencionar um capítulo marcante, intitulado “mistura de mal com o atraso e pitadas de psicopatia”. Um momento forte, de audiência insuperável, mas lamentável. Leciona Garapon (Bem Julgar: ensaio sobre o ritual judiciário) que o ritual judiciário está eivado de simbologia e liturgia, algumas excessivas, mas outras necessárias. Entre elas, a seriedade, formalidade e o respeito do ato de julgar são fundamentais, na medida em que o julgamento penal é um ato solene, que busca recolocar em ordem a desordem gerada pelo crime. Mais do que isso, o julgamento tem uma função pedagógica, comunicativa, de estabelecer um standard de respeito para a sociedade. E o que se viu naquele “capítulo”? A antítese do que se espera do ritual judiciário. Foi a comunicação da legitimação do desrespeito, do descontrole e da desordem.
Semana próxima, os professores de processo penal estarão esperando os novos capítulos de uma novela jurisdicional que chamamos de mexicana, pedindo escusas aos mexicanos. É preciso que dentro do sistema se responda às perguntas postas, declarando-se eventualmente inconstitucionalidades a partir de uma certa autonomia do Direito. O processo penal não pode ser uma aposta nem um espetáculo semanal.
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Aury Lopes Jr. é doutor em Direito Processual Penal, professor titular de Direito Processual Penal da PUC-RS e professor titular no Programa de Pós-Graduação em Ciências Criminais, Mestrado e Doutorado da PUC-RS.
Alexandre Morais da Rosa é juiz em Santa Catarina, doutor em Direito pela UFPR e professor de Processo Penal na UFSC (Universidade Federal de Santa Catarina) e na Univali (Universidade do Vale do Itajaí).